Entre as ofertas de vaga para trabalho formal com baixo salário e os bicos como esteticista, a assistente social Aline Morais, 32, acabou ficando com a segunda opção. Tendo feito faculdade antes da pandemia, ela acabou desistindo da área de formação. “Os salários que ofereciam eram mais baixos do que os da minha época de estágio. Fazer faculdade sempre foi um sonho, mas acabei guardando o diploma na gaveta.”
O impacto da pandemia no mercado de trabalho levou um número recorde de brasileiros com ao menos um curso superior a aderir ao trabalho por conta própria, seja fazendo bicos ou se tornando empreendedores. No terceiro trimestre de 2021, o grupo chegou a 4,03 milhões, o maior para o período de julho a setembro em uma série histórica desde 2015. O número de graduados por conta própria que podem estar em situação mais precarizada, os sem CNPJ, chegou a 2,1 milhões, um aumento de 14,1%, na comparação do terceiro trimestre de 2021 com o mesmo período de 2019 -antes da pandemia.
Entre aqueles com CNPJ, que também reúnem os brasileiros que estão empreendendo, esse aumento foi ainda maior no período, de 37,2%, chegando a 1,93 milhão. Os dados foram compilados pela pesquisadora Janaína Feijó, do Ibre/FGV (Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getulio Vargas). As estatísticas, retiradas da Pnad (Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios) Contínua, são recordes para o trimestre desde 2015, quando a pesquisa começou a acompanhar o grau de qualificação dos trabalhadores.
A pandemia levou em dois anos a um acréscimo de 259 mil trabalhadores no grupo dos conta-própria sem registro, que foram fazer bicos para se reinserir no mercado, diz Feijó. “Nesse universo, está o engenheiro que virou motorista de aplicativo ou o balconista de loja que virou entregador de comida.”. “A pandemia fez sofrer ainda mais os trabalhadores com menor qualificação, mas os dados mostram que mesmo os que tinham ensino superior foram obrigados a fazer movimentos bruscos de carreira”, diz a pesquisadora.
O percentual dos trabalhadores por conta própria com ensino superior também aumentou desde o início da pandemia. Até o terceiro trimestre de 2019, os que faziam bico eram 9,5% do total de autônomos sem registro, enquanto os com CNPJ representavam 28,6% dos formalizados. Em 2021, eles correspondiam a 11% e 30,9%, respectivamente. Feijó aponta que o maior crescimento entre os graduados que têm CNPJ, que a pandemia levou ao empreendedorismo, pode apontar alguns sinais de como o mercado de trabalho deve ser nos próximos anos.
Enquanto os sem CNPJ, que estão fazendo bicos, são um reflexo da baixa formalização do mercado de trabalho, o aumento de empreendedores pode indicar sinais de dinamismo no pós-pandemia, diz. “Quem consegue ter um CNPJ geralmente é aquele que pegou o pouco capital que tinha para abrir um negócio, identificou uma demanda reprimida por um produto ou serviço e quer ficar mais tempo nessa atividade.”
Graduada em processos gerenciais, Kellen Apuque, 32, é um exemplo desse segundo grupo. Ela resolveu apostar todas as fichas no trabalho por conta própria durante a pandemia. A moradora de Belo Horizonte (MG) é MEI (microempreendedora individual) -ou seja, tem CNPJ. Em 2020, Kellen decidiu que havia chegado o momento de concentrar seus esforços em uma consultoria para empresas sobre diversidade na área de recrutamento e seleção. Antes da crise sanitária, Kellen tinha emprego com carteira assinada, embora já prestasse serviços de forma autônoma.
Segundo ela, a preocupação das empresas com diversidade cresceu durante a pandemia, o que fez a profissional se dedicar ao seu próprio negócio. Kellen presta serviços a companhias de maneira online. “Não foi por falta de oportunidade que decidi trabalhar por conta própria. Há necessidade de uma área de recursos humanos mais humanizada nas empresas. Minha proposta é trabalhar pela inclusão e pela diversidade no mercado”, conta. O pesquisador Bruno Ottoni, da consultoria IDados, avalia que, após o tombo gerado pela pandemia, a atividade econômica teve uma reação insuficiente para absorver, em empregos de qualidade, toda a mão de obra à procura de oportunidades no Brasil.
Assim, o trabalho por conta própria tende a ser mais buscado, com ou sem CNPJ, e inclusive por profissionais com mais estudo, indica Ottoni. “Empregos com carteira assinada têm custos para o empregador. Em um cenário de incerteza elevada na economia, como é o caso atual, o empregador costuma ficar desestimulado a contratar com carteira”, afirma. Conforme o pesquisador, a chamada pejotização também pode ter acelerado na pandemia o trabalho por conta própria -nesse caso, com CNPJ. O fenômeno tende a diminuir os custos sobre as empresas na hora de contratar os serviços de um profissional com registro formal.
“O elevado grau de incerteza na pandemia pode ter acelerado o processo de pejotização”, diz Ottoni. O economista Fábio Pesavento, professor da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing) em Porto Alegre, concorda. “Os custos para as empresas ficam menores”, aponta. Na visão Pesavento, ter um CNPJ também facilita a vida dos profissionais que desejam empreender. Em boa medida, esse pode ser o caso dos MEIs.
Por outro lado, o trabalho autônomo sem CNPJ está mais associado aos populares bicos, sinaliza o professor. Ou seja, a atividades que são realizadas por profissionais que não encontram outras oportunidades no mercado e que precisam de alguma fonte de renda com urgência. “A pessoa tem de sobreviver, pagar as contas. A pandemia inflou isso”, diz Pesavento.
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