

Nas primeiras horas da manhã, quando a claridade ainda tenta se deitar sobre a Baía de Todos-os-Santos, um traço silencioso se forma diante dos portões do ferry boat. São motoristas adormecidos sobre volantes, passageiros que espremem o tempo entre um compromisso e outro, trabalhadores que fazem da travessia uma extensão inevitável do dia. Há quem espere sob o sol forte de dezembro; há quem, já no interior da embarcação, encare o ar rarefeito, o piso quente, o estalar metálico que anuncia mais uma viagem em condições que poucos chamariam de dignas. A travessia é necessária — o serviço, muitas vezes, precário. É justamente nesse intervalo entre a necessidade e a precariedade que habita a regulação.
De acordo com o advogado especialista em direito público e mestre em direito econômico e desenvolvimento do Azi e Torres Associados, Victor Campelo, “a regulação, no âmbito do Estado brasileiro, é a atividade pela qual se estabelecem regras para setores econômicos específicos, sobretudo aqueles em que a prestação dos serviços deve seguir padrões mínimos, contínuos e eficientes. Ela é exercida pelas agências reguladoras, que possuem o chamado poder normativo — isto é, a capacidade de editar normas que orientam, vinculam e limitam a atuação das concessionárias responsáveis pelos serviços públicos”.
Esse poder normativo, a rigor, aproxima-se da função de legislar. E aqui reside uma peculiaridade que merece ser compreendida pelo leitor comum, pois explica, em grande parte, os desencontros vividos nas filas do ferry.
“No Brasil, quem detém a competência originária para elaborar leis é o Congresso Nacional, instituição formada por representantes eleitos pelo povo, o que legitima democraticamente o exercício da função legislativa. As agências reguladoras, porém, não são eleitas. São órgãos técnicos, criados para dar especialidade e estabilidade à regulação de determinados setores — energia, saneamento, transportes, e, no caso baiano existe uma Agência Reguladora responsável, entre outros pontos, por acompanhar e normatizar a prestação do serviço de travessia Salvador–Itaparica”, acrescenta o especialista.
Ainda assim, mesmo sem a legitimidade eleitoral, a agência estabelece regras que incidem diretamente na vida do cidadão: define padrões de qualidade, determina frequência mínima de viagens, impõe requisitos de segurança e acompanha o cumprimento das obrigações assumidas pela Internacional Travessias, concessionária responsável pelo sistema ferry boat.
“Quando essa regulação é robusta, clara e atualizada, o serviço tende a cumprir seu propósito público. Mas quando há déficit regulatório — isto é, falhas na elaboração das normas, frouxidão nos padrões exigidos, pouca fiscalização ou parâmetros mal definidos — o reflexo aparece imediatamente no cotidiano: filas intermináveis, horários imprevisíveis, embarcações envelhecidas, desconforto, insegurança, sensação de abandono”, continua.
A precariedade não nasce apenas do operador; muitas vezes ela é fruto de uma regulação deficiente, que não corresponde à complexidade do serviço que pretende organizar. Nesse sentido, pode-se dizer que a qualidade da travessia é, em grande medida, a qualidade da regulação que a sustenta.
Ainda segundo o advogado, ‘o cidadão que espera horas no terminal, que encara um ferry sobrecarregado, que calcula o próprio tempo como quem calcula marés, talvez não saiba que por trás de sua espera existem normas — ou a ausência delas. Há contratos que delimitam o que deve ser entregue e há órgãos públicos incumbidos de assegurar que a entrega seja compatível com aquilo que foi prometido. Se a regulação falha, falha também o serviço. Se a regra é tímida, o conforto também será’.
“E assim, enquanto a embarcação cruza lentamente as águas largas da baía, cria-se a impressão de que a precariedade é um fenômeno natural, como o vento ou a maré. Mas não é. Ela é fabricada — ou permitida — por escolhas normativas. Porque, no fundo, a travessia não é apenas entre Salvador e Itaparica: é entre o que se vive e o que se poderia viver, caso o poder regulador estivesse plenamente à altura do caminho que deve guiar”, conclui Dr Victor Campelo.
Foto: Caio Lírio