Quando eu era criança, fiquei fascinado ao saber que tinha uma prima atriz. E minha mãe aumentou o fascínio ao dizer que ela era linda, tinha olhos de pantera e se parecia com ela.
Chamava-se Isabella e havia deixado a pequena cidade de Mundo Novo, na borda da Chapada Diamantina, aos 15 anos, para aventurar-se no Rio de Janeiro e daí ganhar o mundo. Havia sido aeromoça da Pan Air e manequim na Maison Dior, em Paris, e um dia voltou ao Brasil para tornar-se atriz. Até aí, Isabella era, para mim, apenas uma história que minha mãe contava.
Muitos anos depois, arrebatado com o livro Dom Casmurro de Machado de Assis, fui em busca dele nas telas e encontrei-me novamente com minha prima atriz, ao descobrir que ela havia sido a primeira Capitu do cinema. E o encanto voltou. Isabella, que se tornou atriz no Teatro O Tablado, fundado por Maria Clara Machado, já era então uma musa do Cinema Novo.
Havia estreado fazendo um episódio do filme Cinco Vezes Favela, de Marcus Farias, talvez o primeiro filme do Cinema Novo, e fizera outros até tornar-se Capitu no filme do cineasta Paulo César Saraceni com quem havia se casado.
Um dia, assisti o filme de Saraceni no Canal Brasil e, finalmente, encontrei-me com Isa. Ela estava no auge dos trinta anos e era tão linda quanto dizia minha mãe. E se parecia com ela, ou pelo menos eu achei assim, da mesma maneira, talvez, como Bentinho, que achava seu filho com Capitu parecido com o amigo Escobar. Isabella tinha uma beleza calma, quase fria, mas seu olhar era intenso e profundo, e olhava como se quisesse entrar na alma de quem a via.
Nenhum cineasta conseguiu adaptar para o cinema, com rigor, beleza e força, a literatura de Machado de Assis, e com Paulo César Saraceni não foi diferente. Mesmo tendo o roteiro escrito por Paulo Emílio Salles Gomes e Lygia Fagundes Telles, e Bentinho e Escobar interpretados por ninguém menos do que Othon Bastos e Raul Cortez, o filme estava longe de traduzir a genialidade da obra-prima do bruxo do Cosme Velho. Mas a Capitu de Isa tinha maravilhosos olhos de cigana “oblíqua e dissimulada”, olhos de ressaca que traziam à minha memória “os mares e as águas, a tempestade e os náufragos”. E, ao vê-la, a vontade de conhecer minha prima atriz, musa do Cinema Novo, foi tão grande quanto os ciúmes de Bentinho.
Em 2008, publiquei meu livro Recôncavo e fiz seu lançamento na Livraria Argumento, no Leblon, no Rio de Janeiro. Foi quando, em meio a dedicatórias e autógrafos, minha atenção foi capturada por um par de olhos grandes que pediam licença para ver minha alma. Era Isabella, que, de braço dado com o amigo e primo Gilberto Lopes, olhava para mim à espera de um autógrafo. Logo depois, saindo da livraria, encontrei Isa sentada no meio fio e aí ficamos a conversar. Haviam se passado 40 anos desde que fizera Capitu, mas estava linda e se parecia com minha mãe.
Publicado no jornal A Tarde em 20/09/2024
Armando Avena é escritor, jornalista e economista. É membro da Academia de Letras da Bahia.