A Bahia precisa estar preparada e ter uma clara e efetiva estratégia para o dia seguinte à saída da concessionária de sua malha ferroviária tradicional – a SR-7 da antiga Rede Ferroviária Federal. O divórcio foi antecipado pela própria Ferrovia Centro Atlântica (FCA), atual concessionária, quando comunicou ao Ministério dos Transportes que, na renovação antecipada de sua concessão, não deseja manter sob sua gestão qualquer trecho de ferrovia em território baiano. Já vai tarde! Mas é preciso virar a página.
A Bahia vai ficar com uma verdadeira sucata, herança maldita que será preciso reverter no menor lapso de tempo possível. Para isto é indispensável agir com rapidez para fazer com que este tempo seja realmente mínimo, sob pena de, mesmo depois do desfecho do caso, permanecerem os efeitos nefastos deixados para trás. Para tanto, é preciso planejamento e decisão.
Embasamento técnico não falta. Estudos já foram realizados pela Fundação Dom Cabral, conceituada entidade de consultoria e projetos, primeiro, para a Companhia Baiana de Pesquisa Mineral (CBPM) e, agora, para a Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia (SEI), ambos órgãos e entidades integrantes da estrutura do governo do Estado.
É certo que as decisões são de competência federal, mas nem por isto a Bahia pode – nem deve – omitir-se ou manter-se alheia ao curso dos acontecimentos. Não é possível deixar ao deus-dará questão desta magnitude, e de importância crucial para o presente e futuro da sociedade baiana – Poder Público, classes empresariais, academia, entidades profissionais, imprensa, toda a sociedade. É o interesse de todo o povo baiano que está em jogo!
A disponibilidade de infraestrutura é questão estratégica, de suma importância para o desenvolvimento econômico e social de qualquer área territorial. No caso da Bahia, o isolamento logístico a que estamos relegados – ferrovias, portos e rodovias – compromete as perspectivas, possibilidades e alternativas de desenvolvimento deste importante ente da federação. Não é sem razão que já perdemos uma posição no ranking do PIB dos estados e estamos rolando ladeira abaixo na participação relativa no PIB do Nordeste.
Vamos aos fatos: embora tenha a obrigação de manter as operações da malha ferroviária até 30 de agosto de 2026, a FCA já está se desfazendo dos poucos contratos que ainda tem por aqui, ou seja, está encerrando, imediata e antecipadamente, as suas atividades, independente e antes mesmo da decisão do governo federal quanto à renovação antecipada de sua concessão. Isto significa que o cenário tende ainda a se agravar.
Só há uma atitude a ser tomada: precipitar o desfecho, segregando de imediato a malha baiana da concessão vigente para, de pronto, criar as condições jurídico-legais necessárias e indispensáveis para disponibilizar a malha, ou parte dela, para novas soluções. É uma pré-condição. E é o que foi feito no caso da Transnordestina, em relação ao acesso ao porto de Suape, em Pernambuco. Depende apenas da chamada “vontade política”!
Aliás, observe-se como os pernambucanos agiram com rapidez, mobilizando-se seu governo e a bancada federal, e conseguindo, de imediato, um compromisso político que viesse a preencher rapidamente a lacuna. É preciso não ter vergonha de copiar esse exemplo de eficiência e de unidade em defesa dos interesses do Estado.
Como já se dispõe dos estudos técnicos, precisa-se agora estabelecer a estratégia a ser seguida para repor, em padrões modernos e atuais, as condições operacionais do sistema ferroviário baiano.
Embora ainda não concluída, está em andamento a implantação da Ferrovia de Integração Oeste-Leste (FIOL), cujo trecho I, de Ilhéus a Caetité, está concedida à Bahia Mineração (Bamin), enquanto o trecho II, de Caetité a Barreiras, tem suas obras a cargo do próprio governo federal. Neste momento, o Ministério dos Transporte realiza a licitação de um último lote nesse trecho, o que criará as condições para uma nova concessão. Assim, a FIOL está se tornando realidade inquestionável. Estrada de bitola larga, este passa a ser um novo paradigma para o sistema ferroviário em território baiano.
Para o futuro, deve a Bahia passar a contar com dois grandes eixos ferroviários: o Leste-Oeste que, com a integração FICO-FIOL, se estenderá até o coração do estado de Mato Grosso; e a ligação Sudeste-Nordeste, a ser desenvolvida sobre os destroços da antiga malha da Rede Ferroviária Federal, hoje FCA. Esta é a configuração da nova equação ferroviária baiana. Mas este segundo eixo depende do encaminhamento que vier a ser dado ao espólio da FCA.
Tratando-se de uma malha muito extensa, é inviável retomá-la por inteiro de uma só vez. Será preciso reconstituí-la por partes. Sim, da terra arrasada que nos deixa a FCA só se aproveita o lastro. Será preciso, de fato, construir uma nova ferrovia. E em bitola larga.
A prioridade que se impõe é a reabilitação da antiga Linha Sul, que se estende por 1.154km, de Salvador a Corinto (MG). Ainda assim, trata-se de um desafio de grande porte, sendo recomendável, para torná-la exequível em menor prazo, que sua implementação seja dividida em dois tramos: um de Salvador a Brumado, e outro, de Brumado a Corinto, a serem executados simultâneamente. Brumado é o marco divisório porque aí a Linha Sul cruza com a FIOL, ainda no seu trecho I, cuja conclusão está prevista para 2027.
Esse trecho permite vislumbrar a reintegração da Região Metropolitana de Salvador, do Polo Industrial de Camaçari – o maior do Nordeste – e da Baía de Todos os Santos – o melhor porto natural do país – com o novo sistema ferroviário nacional, uma vez que a FIOL terá seu engate com a FICO em Mara Rosa (GO), no cruzamento com a Ferrovia Norte-Sul, rompendo o isolamento porto-ferroviário do Estado.
Numa perspectiva de mais longo prazo, a Linha Sul tornará possível reativar a articulação ferroviária do Nordeste. Sergipe e Alagoas são estados que precisam do trem baiano para terem ferrovia, chegando a Pernambuco, para integrá-los todos à nova malha ferroviária nacional.
Mas há detalhes importantes a serem observados. E nos detalhes é que mora o perigo. Primeiro, é que não é mais possível fazer uma “meia-sola” na ferrovia pré-existente. Não apenas por seu total estado de degradação, mas também porque toda a nova malha ferroviária nacional é de bitola larga, e a malha antiga é de bitola métrica.
Segundo, a necessidade de constituição de um funding que conte com recursos da indenização devida pela FCA e parcela significativa da outorga a ser paga na renovação antecipada, para custear parte do empreendimento. Ainda que o tempo seja curto, fato é que a VLI, controladora da FCA, almeja a renovação de seus interesses no trecho da malha que serve aos estados do Espírito Santo e de Minas Gerais. O Plano Estratégico Ferroviário de Minas Gerais, todo em bitola larga, conta, aliás, com a manutenção da nossa Linha Sul – de Salvador a Corinto.
Terceiro, porque, institucionalmente, é preciso avaliar com exatidão qual a melhor opção para a retomada da ferrovia baiana: se o antigo sistema de concessões ou a nova alternativa do regime de autorização, certamente mais atrativo ao setor privado, uma vez que não está sujeito ao pagamento de outorga e tem prazo de 99 anos (nas concessões o prazo é de 30 anos). No caso de ser adotado o regime de autorização, a União deverá abrir um chamamento público para que se manifestem os interessados.
É indispensável que sejam criadas as condições para que a União abra, de imediato, ainda em 2024, um chamamento público para toda a Linha Sul, dividida nos dois tramos acima referidos: Salvador-Brumado e Brumado-Corinto. Esta parece ser a alternativa que melhor atende aos interesses nacionais e da Bahia.
Waldeck Ornélas é especialista em planejamento urbano-regional. Autor de Cidades e Municípios: gestão e planejamento.