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GAL COSTA POR ARMANDO AVENA

Redação - 11/11/2022 15:52 - Atualizado 11/11/2022

A primeira vez que vi Gal Costa foi no Teatro Castro Alves, no show “Os Doces Bárbaros”, e, apaixonado, deixei que sua voz me levasse pelo mundo. Éramos, nós mesmos,  doces e bárbaros e Gal embalava nosso sonho.

Éramos doces porque nos amávamos sem saber bem como, sem saber bem porquê e sem se importar com os “comos” e os porquês. E a trilha sonora do nosso filme era Gal quem cantava. “O seu amor/ ame-o e deixe-o livre para amar/Livre para amar. O seu amor/ ame-o e deixe-o/ ir aonde quiser”. E a voz de Gal era um canto de liberdade, a liberdade que a ditadura queria tirar de nós, exilando-nos com seu dístico radical: Brasil: ame-o ou deixe-o!, que muitos brasileiros voltaram a gritar, mas que então, como agora, só merece ser ridicularizado pela música de Caetano.

Éramos bárbaros porque estrangulávamos  as segundas-feiras dançando até o sol nascer e quando ele nascia, sóbrio e sonolento, abrigávamo-nos no Gererê, no Largo de Amaralina, o único que, aberto 24 horas, nos recebia com fleugma. E a voz de Gal era como um hino que nos impelia a tomar a cidade. “Com amor no coração/ Preparamos a invasão/ Cheios de felicidade/ Entramos na cidade amada”. E, donos da cidade, desafiávamos as madrugadas perambulando pelas festas de rua da Bahia, no tempo em que eram festas as festas da Bahia.

Depois, saí pelo mundo, mas sempre levei Gal comigo. Fosse de tanga vermelha em close, marcando o sexo, com colares indígenas e a saia de palha sendo retirada devagar, ou como uma Carmen tropical com uma rosa vermelha e outra amarela no cabelo ou ainda embaixo d’água, submersa mas viva, Gal estava sempre comigo.

 E eu a levava por toda a parte porque ela sabia de mim e acompanhava minha alegria cantando “Balancê”, embalava meu ciúme com “Alguém me disse”, o bolero de Jair Amorim e Evaldo Gouveia, e afagava minha saudade “No Rancho Fundo” de Ary Barroso e Lamartine Babo. E quando nada dava certo e a autoestima parecia ter desaparecido, ela solfejava aquela estranha canção de Caetano que tinha o dom de consolar: “Eu sou um homem tão sozinho/ Mas brilhas no que sou/E o meu caminho e o teu caminho/ É um nem vais nem vou”.

Muito tempo se passou até eu descobrir que era Gal e Caetano e Bethânia e Gil que tiravam da gente o que nós tínhamos de doces e bárbaros. Mas então eu já sabia que éramos doces e sem mágoa da vida porque ainda não sabíamos o que ela ia fazer com a gente. E que éramos bárbaros porque buscávamos ser livres e ser assim é viver perseguido por correntes.

Muitos anos depois, em 2011, voltei a ver Gal Costa no Carnegie Hall em Nova York. Acompanhada apenas pelo violão, ela fez o que sempre soube fazer com graça e emoção: cantar. E cantar Bossa Nova. No final do show, ela voltou para o bis e cantou Dindi de Tom Jobim: “Céu, tão grande é o céu/E bandos de nuvens que seguem ligeiras/ Pra onde elas vão, ah, eu não sei, não sei”.

Gal Costa se foi e, como as nuvens de Tom, eu não sei dizer para onde, mas sei que ela está no coração de todos que como eu a via como uma musa de voz aguda e forte a acompanhar a nossa vida.

Publicado no jornal A Tarde em 11/11/2022

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