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VEJA COMO TRABALHO REMOTO PODE PREJUDICAR FILHOS

admin - 08/03/2022 09:40 - Atualizado 08/03/2022

Eu trabalho muito. Em parte, devido aos meus hábitos não muito equilibrados e, por outro lado, também trabalho com equipes do mundo inteiro. Por isso, eu admito que não desligo tanto quanto deveria. E me preocupo se meu filho irá perceber a situação. Ele tem só 2 anos de idade, mas me vê nos meus aparelhos eletrônicos com muito mais frequência que o desejável. Muitas vezes, logo depois que ele acorda, já estou no computador; durante o jantar, às vezes me pego verificando meu telefone de trabalho, desviando minha atenção.

Ele já aprendeu a dizer “mamãe está trabalhando” e sabe pedir lanches ou brinquedos para o papai quando estou com a cabeça baixa. E, com o trabalho híbrido passando a ser padrão, ele irá me ver nesses aparelhos com mais frequência que se eu ficasse trabalhando apenas no escritório.

Pais vêm trabalhando em frente às crianças há séculos. Mas a pandemia alterou radicalmente nossa forma de trabalho, trazendo consigo ambientes remotos para muitas pessoas. Alguns pais – particularmente os trabalhadores do conhecimento (aqueles que usam principalmente seus conhecimentos, informações e inteligência para desenvolver seus trabalhos) – têm seus hábitos de trabalho cada vez mais à vista das crianças de uma nova forma.

Pesquisas já demonstraram que o comportamento e as práticas dos adultos podem influenciar a relação das crianças com seu trabalho no futuro, bem como a forma de seu desenvolvimento. E agora que muitos pais que trabalham não estão no escritório como antes, esses efeitos poderão ser exacerbados?

Especialistas afirmam que a maior exposição ao trabalho pode trazer desvantagens tanto para o desenvolvimento das crianças quanto para a forma como elas percebem o papel do trabalho na vida dos pais. Mas pode também haver vantagens ocultas – e os pais podem agir para amplificar a parte boa, em detrimento da ruim.

‘Sua prioridade é o trabalho’

Pesquisas realizadas na última década demonstraram que as atitudes e comportamentos dos pais com relação ao trabalho podem ter impacto sobre seus filhos. Em 2017, Ioana Lupu, professora da Escola Superior de Ciências Econômicas e Comerciais (ESSEC, na sigla em francês), na França, publicou resultados de estudos que tentavam descobrir se as crianças imitam os hábitos de trabalho dos seus pais na idade adulta.

Observando funcionários dos principais escritórios de advocacia de Londres, Lupu encontrou uma quantidade considerável de trabalhadores imitando os padrões dos seus pais. Aqueles cujos pais trabalhavam por muitas horas ou eram provedores, por exemplo, apresentavam propensão a reproduzir esse padrão na sua própria vida profissional na idade adulta, seja consciente ou subconscientemente.

Outras pesquisas de Stewart Friedman, autor do livro Total Leadership: Be a Better Leader, Have a Richer Life (“Liderança total: seja um líder melhor, tenha uma vida mais rica”, em tradução livre) e psicólogo organizacional da Escola Wharton da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, demonstraram que as crianças muitas vezes apresentam sofrimento emocional quando seus pais são psicologicamente muito dedicados às suas carreiras. Além disso, a divisão da atenção dos pais devido ao trabalho com seus aparelhos eletrônicos também causa prejuízos emocionais e até físicos. Esses estudos foram conduzidos antes da pandemia, quando os pais estavam frequentemente nos seus escritórios. Agora que eles trabalham mais na frente das crianças, devido às configurações de trabalho remoto, os dois pesquisadores acreditam que esses efeitos poderão ter se intensificado.

As condições atuais são parecidas com “levar sua criança para um dia de trabalho”, mas todos os dias, segundo Friedman – e ele acredita que isso é problemático. Em alguns horários do dia, as crianças estarão em frente a aparelhos eletrônicos ou com um livro, enquanto a atenção do pai estará em outro lugar. Quando os filhos veem os pais trabalharem, eles podem acreditar que estão fazendo outras tarefas com pessoas que são mais importantes que eles.

“Você está pegando o seu bem mais precioso, que é a sua atenção, e desviando da pessoa mais importante do mundo para você… e eles sentem isso”, afirma Friedman. Ele acredita que as crianças mais jovens podem ser especialmente afetadas quando os pais são “psicologicamente removidos da vida familiar enquanto estão fisicamente presentes”. Lupu concorda, especialmente com o aumento do uso de aparelhos eletrônicos fora dos horários de trabalho padrão.

“Por definição, esses aparelhos são muito envolventes”, segundo ela. “Você pode dizer ‘preciso de apenas cinco minutos para responder este e-mail e vou estar com você’, mas isso dificilmente acontece.”. Lupu afirma que as crianças, que anseiam por atenção, podem ter reações emocionais negativas quando os pais desviam seu olhar. “Elas entendem isso como ‘não sou tão importante agora’, o que pode ser muito prejudicial se elas forem expostas a isso com muito mais frequência que no passado.”.

Lupu acrescenta que, muitas vezes, as crianças internalizam a forma como os pais priorizam o trabalho. “As crianças tendem a achar que as atividades em que passamos mais tempo são as mais importantes”, segundo ela. “Elas poderão facilmente dizer que, como você está passando tanto tempo no seu trabalho e tão pouco tempo comigo, isso quer dizer que a sua prioridade é o trabalho.”

E os limites menos definidos entre a casa e o trabalho podem ser “caóticos”, segundo acrescenta Sara Harkness, professora de desenvolvimento humano e ciências familiares da Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos. “É estressante para os pais, mas também para as crianças”, afirma ela.

Essa imprecisão dos limites indica que as definições entre quando os pais podem dar atenção e quando não podem estão incertas. Antes da pandemia, as crianças tinham períodos em que não esperavam atenção dos pais, como as atividades escolares ou extracurriculares. Elas também compreendiam que os pais no escritório ou no trânsito não estavam ativamente disponíveis para eles. “Agora, com o trabalho em casa”, afirma Lupu, “alguns pais podem estar presentes fisicamente, mas não mentalmente.”

Friedman também observa os efeitos “indiretos”. Quando os pais têm interações negativas no trabalho em frente às crianças, elas podem achar que são a fonte dessa tensão. Friedman afirma que, se as crianças virem um pai ansioso e com raiva, elas podem ficar confusas e preocupar-se com os motivos. “[Elas podem] dizer ‘eu fiz alguma coisa errada?’… e começam a sentir-se inseguras.”

Existe também um componente de gênero sobre alguns desses efeitos, segundo Lupu. A influência negativa pode ser mais aguda quando vem das mães, devido à expectativa enraizada de que as mulheres geralmente dedicam-se mais ao trabalho doméstico e aos cuidados com a família do que os pais, de forma que as crianças esperam que elas estejam disponíveis para tarefas como o trabalho doméstico e a criação dos filhos.

Embora alguns pais venham se dedicando mais aos cuidados com a família devido ao trabalho remoto, geralmente é mais “aceito” que os homens tracem linhas rígidas além das quais eles não dedicam atenção para os filhos. Mas Friedman adverte que “os pais não têm ‘passe livre'”, pois eles ainda detêm influência significativa sobre a forma como o trabalho afeta os relacionamentos familiares.

Foto: divulgação

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