Um dos aspectos mais surpreendentes do livro, Sapiens – Uma Breve História da Humanidade, do escritor israelense Yuval Noah Harari, é a tese de que a humanidade tonou-se o que é através da ficção. O livro afirma que o Homo Sapiens, do qual todos nós descendemos, destruiu as outras espécies “homo” e dominou o mundo por causa da linguagem. Foi a linguagem que permitiu que eles cooperassem, buscassem a sobrevivência juntos e enfrentassem os grandes animais que habitavam o mundo. Outros animais também tinham algum tipo de linguagem, mas a linguagem humana era versátil e servia não só para alertar contra o perigo, mas também para montar uma estratégia de enfrentamento ou de caça.
Essa linguagem primitiva podia gerar bandos, mas não criava comunidades e, segundo Harari, elas só surgiram quando a linguagem evoluiu ao ponto dos homens puderam “fofocar”, ou seja, falar sobre eles mesmos e assim se conhecerem intimamente. A teoria da fofoca parece brincadeira, mas é aceita por grande parte dos estudiosos, afinal até os dias de hoje a espécie humana passa grande parte do seu tempo falando dos outros e esse tipo de comunicação une, desune e une famílias e pequenos grupos de homens e mulheres. Mas essa liga junta um número limitado de pessoas, algo como no máximo 150 delas, então como fazer para juntar milhares em torno de uma ação ou objetivo? É aí que Harari afirma que foi a ficção, a capacidade de criar histórias sobre coisas que não existem, que permitiu a união de milhões de pessoas em torno de um objetivo comum.
Através da linguagem, o homem criou mitos e foi capaz de fazer com que outros homens acreditassem neles e em favor desses mitos ou contra eles aceitassem lutar até a morte.
O código de Hamurabi, os mitos gregos, as tábuas que Moisés recebeu no Monte Sinai, o deus dos judeus e dos cristãos, os reis divinos, seriam apenas mitos criados pela inteligência dos Sapiens para assim se juntarem em torno de um objetivo comum, fosse ele a organização da sociedade e a preservação da vida, ou apenas a luta pela terra ou por uma absurda crença de que seus valores e seus mitos seriam mais verdadeiros do que o dos outros. As grandes civilizações, as guerras e as revoluções teriam como base a ficção.
A crença em coisas que não existem ou não tem caráter tangível, seja uma religião ou uma ideologia, foi quem permitiu ao homem trabalhar em conjunto e civilizar o mundo. E Harari diz que na modernidade as ideias iluministas e mais elaboradas seriam também uma espécie de ficção criada pelo homem com o objetivo de ordenar a comunidade e proteger valores que promovam a existência de uma sociedade estável e próspera. A tese é boa, o problema é que, mesmo na modernidade, mesmo com o avanço das ciência e das ficções libertárias, ainda existem homens que defendem o autoritarismo e cultuam mitos perversos e ideias de destruição.
Publicado no jornal A Tarde em 17/09/ 2021