A crise financeira afetou em cheio as faculdades particulares de Salvador e quem paga o preço desse prejuízo são os professores. Do segundo semestre de 2020 até agora, foram, pelo menos, 186 profissionais de educação e funcionários demitidos em cinco instituições baianas. Até um grupo de Whatsapp foi criado: “vamos à luta”, composto por ex-professores da UniFTC. O grupo chegou a ter 110 participantes e, hoje, tem 79.
Na Uniruy, houve demissão em massa antes de começar o semestre de 2021.2: foram 56 docentes e funcionários desligados em um único dia, no dia 12 de julho. Pelo menos 6 foram afastados da Faculdade Batista Brasileira (FBB) e outras 14 pessoas do corpo administrativo da Universidade Católica de Salvador (Ucsal).
Pelo não cumprimento das leis trabalhistas, muitas das demissões rendem processos judiciais. Dados do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região (TRT5) indicam 1.504 processos homologados desde 2016, contra seis principais faculdades de Salvador – Unime, UniFTC, Ucsal, Uniruy, Unifacs e Unijorge. Isso dá uma média de mais de 22 processos por mês.
A natureza dos procedimentos vai desde assédio moral à não pagamento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), multas rescisórias, horas extras, falta de aviso prévio e acúmulo de funções. O líder do ranking é o não pagamento ou pagamento inferior do FGTS, que acumula 967 ações. Segundo reportagem do jornal Correio, as consequências dessa crise financeira nas universidades particulares soteropolitanas, agravada pela pandemia da covid-19. Com ela, as instituições de ensino distribuem pedidos de demissão, atrasam salários e alunos têm formaturas adiadas.
Se, por um lado, o quadro de professores reduz, por outro, as salas lotam de alunos. Professores ouvidos pela matéria, que não quiseram se identificar, narram que se tornou comum salas com mais de 100 estudantes, agora com a modalidade remota. Em uma classe de Direito da UniFTC, chegou a 240 pessoas.
O enxugamento da folha foi tanto que, nos cursos de engenharia (civil e ambiental), por exemplo, só existem quatro professores de Salvador. Os outros são da rede, de outras cidades. “Estão aproveitando o ensino remoto e colocando uma superpopulação de alunos, com alunos, inclusive, de outras cidades”, revela Alice Lacerda, ex-professora do curso de comunicação da UniFTC, demitida em julho. Todos os semestres, ela conta que os colegas já especulavam quem seria o demitido da vez. “A cada semestre, vão saindo colegas. A gente já fica esperando quais serão os próximos”, conta.
Na Unime, segundo um professor que falou sob condição de anonimato (ele ainda não foi demitido), os docentes têm sido demitidos e substituídos por outros, mais baratos. O grupo tem contratado professores da rede para dar aulas mais genéricas e reduzir a carga horária dos docentes da casa – para depois demití-los.
“A maioria dos professores não são da casa, isso tem reduzido a oferta de disciplinas e a qualidade também. Quando entrei na Unime, eram 200 professores. Hoje, se tem 50, tem muito. Tiraram o valor do professor em sala de aula. O critério de titulação dos professores não conta mais, e sim aqueles com pouco experiência, porque têm carga salarial mais baixa”, conta.
O docente diz que esse é um processo que vem ocorrendo há, pelo menos, sete anos. “Grandes grupos empresariais da educação se apropriaram de quase 80% do ensino universitário do país, vendo o professor como gasto e o estudante como número. Isso também é resultado de uma política rígida do MEC [Ministério da Educação], que não protege a qualidade de ensino e não garante o acesso ao Prouni e Fies”, argumenta.
Para Alice, demitida da UniFTC, essa baixa presença do professor em sala faz parte de um novo modelo de ensino. “Isso faz parte de um movimento maior, de mudança do modelo educacional. O que vejo no futuro é uma educação sem professor, porque usam desse discurso de autonomia do aluno para tirar o professor de cena cada vez mais, como se fosse algo bom. É uma situação triste, porque os cursos estão cada vez mais precários”, prevê.
Alice ainda narra que a pandemia e o ensino remoto só fizeram com que mais demandas se acumulassem. “Eles fizeram mudanças pedagógicas drásticas, onde instituíam uma série de materiais que o professor tinha que produzir e não estava previsto. Tínhamos que produzir vídeo, podcast, textos autorais, além das aulas síncronas, e não somos pagos para isso, pelo contrário, só houve corte”, narra.
Clima adoecedor
A situação é parecida em todas as faculdades. Na Uniruy, os professores se uniram para enviar uma carta à reitoria, porque não conseguiam concordar com a falta de humanidade do trabalho. A carta continha 34 assinaturas. Desses que assinaram, 20 foram demitidos. O clima era tão desarmonioso que a demissão foi até comemorada.
“O clima estava de tanto assédio que muitos professores comemoram a demissão, porque já estava insuportável, adoecedor. Os relatos dos professores são de quase loucura, muitos desenvolveram ansiedade, pressão alta e depressão. As pegavam turmas de 150, 200 alunos”, conta uma ex-professora, demitida em julho da Uniruy, que pediu para não se identificar, por medo de retaliação.
Desorganização interna
Outra docente, também demitida pela Uniruy, diz que os setores não conversam entre si. Ela chegou a ser coordenadora de um curso, que era sinônimo de acúmulo de tarefas. “Ficava enlouquecida porque vinha uma nova resolução, mudavam o processo e ninguém avisava. O setor de admissões não conversava com a coordenação, que não conversava com a secretaria. O RH local não tinha poder nenhum e mandavam a gente falar com o pessoal em Fortaleza, Rio de Janeiro, que também não conseguia resolver”, narra.
A docente fazia muito mais do que estava previsto no contrato e do que chegava na conta bancária. “Em tese, era a coordenação pedagógica, mas, como extinguiram a coordenação administrativa, era eu que cuidava do plano pedagógico, fazia plano de orçamento, tirava pedido de férias de funcionário, produzia eventos extraclasse… a gente tinha carga horária de 30 horas, mas tarefa para 60h”, detalha.
Em sala de aula, os professores tinham que corrigir em torno de 40 TCCs, de 90 páginas cada. “Como isso gera um trabalho de qualidade? Como ter certeza que não houve plágio?”, indaga. Outra ex-docente diz é comum só saber a grade de disciplinas que lecionaram uma semana antes do início das aulas. “A gente não teve tempo de preparar”, desabafa a professora.
Sindicato nega demissões em massa
O presidente da Associação Baiana de Mantenedoras do Ensino Superior (Abames), Carlos Joel, desconhece demissões em massa de professores. “São informações que não compartilham com o sindicato”, declara. Joel pontua que as Instituições de Ensino Superior “têm autonomia de gerenciar suas admissões e demissões e não há motivação para a Semesb intervir”.
Especificamente sobre a Uniruy, o presidente do sindicato alega que ela foi incorporada à Estácio e “naturalmente deve está passando por reestruturação”. Segundo ele, a motivação dessas demissões foi pela crise financeira que as faculdades, como qualquer outra empresa, que foi agravada pela pandemia.
Ele reforça que essa dificuldade econômica não é de agora. “A pandemia aguçou a inadimplência, a evasão e a ausência das pessoas em ingressar no sistema de ensino. Isso tem impacto de natureza econômica nas instituições, como qualquer empresa. O impacto maior é pela ausência de financiamento estatal para o estudante, que não tem condição de pagar mensalidade”, explica Joel, citando o Fies e Prouni.
De acordo com o sindicato, a partir de dados do último censo do Ministério da Educação (MEC), de 2019, são 10 mil professores de universidades, faculdades e centros universitários privados, com e sem fins lucrativos, filantrópicas e confessionais, na Bahia. O número de alunos é de 340 mil no estado, distribuídos em 106 instituições. Salvador detém quase um terço dos alunos, com 98.196 matriculados em cursos presenciais.
O que dizem as faculdades
Sobre as demissões, a Uniruy informou que fazem parte de “processo natural” da instituição, que ocorre duas vezes no ano. “As movimentações que porventura ocorram no campus fazem parte de um processo natural de uma instituição de ensino que periodicamente avalia a sua base de docentes, adequando-a às necessidades do mercado, demandas de cursos e às particularidades da praça em que atua”, alega, por meio de nota.
A instituição ainda disse que não há desligamentos em massa. “O processo de desligamento de um professor busca respeitar as chamadas “janelas”, período compreendido entre o encerramento de um semestre e o início de outro, porque nesse espaço de tempo não há atividade acadêmica”, adiciona. Apesar das 56 demissões, a Uniruy “irá fazer um grande investimento nos próximos meses em inovação dos espaços do campus”.
Já a Rede UniFTC esclarece que “redefiniu suas rotinas institucionais sem comprometer a qualidade do processo de ensino-aprendizagem”. Sobre as demissões, ela disse que “desde meados do ano passado, a instituição mantém um quadro de professores que atendem às necessidades acadêmicas das disciplinas ofertadas, não havendo qualquer intencionalidade de modificação, até o momento, para o semestre letivo 2021.2”.
A Unime explica que as demissões e contratações de professores “ocorrem de acordo com a adequação do quadro de docente às disciplinas oferecidas naquele semestre, que por sua vez seguem as matrizes curriculares e a formação de turmas de alunos”. Procuradas, a Unijorge, Unirb, Unifacs, Estácio, Faculdade Batista Brasileira, Faculdade Baiana de Direito e o Centro Universitário AGES não quiseram responder à matéria. A UniNassau disse não poder falar sobre o assunto por restrição da Bolsa de Valores.
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