A CPI da Covid analisa documentos em que enviados do Ministério da Saúde a Manaus (AM) sugerem a criação de tendas para indicar remédios sem eficácia comprovada contra a Covid. Essas tendas funcionariam fora dos hospitais. Em janeiro deste ano, no auge da pandemia no Amazonas, o Ministério da Saúde pagou a viagem de 11 médicos a Manaus com um objetivo: orientar profissionais de saúde do estado para receitar remédios sem eficácia no tratamento da Covid.
À frente da operação estava a secretária de Gestão do Trabalho do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro. Depois de passar alguns dias na cidade, o grupo de médicos elaborou um relatório que foi enviado no dia 20 de janeiro a Mayra Pinheiro e ao secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde, Hélio Angotti. “Segue o relatório que tinha a data para ser preenchido até o dia de hoje 20/01/2021, com a finalidade de relatar o que foi encontrado nas visitas das UBS’s em Manaus, se adota ou não o tratamento precoce. Seguindo com algumas opiniões e possíveis soluções dos médicos voluntários.”
Segundo o documento, nas visitas realizadas, foi constatado que 13 unidades básicas de saúde em Manaus adotavam o tratamento com medicamentos sem eficácia e que sete não adotavam. Um dos médicos que participaram da comitiva, Gustavo Vinícius Pasquarelli Queiroz, relatou a resistência de colegas para prescrever remédios sem eficácia. E sugeriu: “Criação de ‘tendas de tratamento precoce’, onde atuariam profissionais que aderem esta modalidade terapêutica. Para não haver discordâncias entre as prescrições, sugiro a criação de um ‘Kit'”.
O médico afirmou que seria uma forma de ampliar a oferta dos medicamentos. “Assim sendo, daríamos a opção dos doentes escolherem e não dos profissionais. Visto que atualmente os doentes têm que ter a ‘sorte’ de ser atendidos por um médico prescritor do tratamento precoce. Com as tendas, a decisão fica a cargo dos pacientes. Por fim, mesmo que os colegas locais aceitem o tratamento precoce, as UBS não disponibilizam as medicações. Algumas unidades não têm nem Dipirona.”
No e-mail, também consta o relato de outro médico, Luciano Dias Azevedo, após visitas feitas no dia 15 de janeiro, auge da crise de oxigênio em Manaus. Luciano Dias Azevedo é investigado pela CPI por integrar o chamado “gabinete paralelo”, que aconselhava o presidente Jair Bolsonaro a adotar medidas contrárias à ciência, como o uso de medicamentos ineficazes. Ele também é apontado como o responsável por elaborar uma proposta para incluir na bula da cloroquina a recomendação para uso contra a Covid. Esta proposta foi recusada em uma reunião no Palácio do Planalto pelo diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Antonio Barra Torres.
Tanto o “gabinete paralelo” quanto o uso de medicamentos sem eficácia estão entre as linhas de investigação da CPI. No e-mail, Luciano defendeu que enfermeiros passassem a prescrever medicamentos no caso de resistência dos médicos: “Problema: Poucos médicos que prescrevem o tratamento precoce. Solução: Aumentar o número de profissionais médicos que prescrevem tratamento precoce nas unidades básicas e/ou dar autonomia de prescrição para os enfermeiros treinados no escore clínico associado a treinamento na identificação das fases da doença para prescreverem os pacientes e moradores do mesmo lar.”
Na avaliação da cúpula da CPI, os documentos mostram que o governo operou abertamente para impor o uso de medicamentos sem comprovação científica na rede pública de saúde. E comprovam que Mayra Pinheiro mentiu em maio à CPI, quando afirmou que o Ministério da Saúde nunca recomendou o uso desses remédios. “Vossa senhoria visitou as unidades básicas de saúde para recomendar aos médicos do SUS o uso do tratamento precoce?”, indagou o relator, senador Renan Calheiros (MDB-AL), durante o depoimento.
“Não, senhor”, respondeu Mayra Pinheiro. “Não visitou a unidade, mas recomendou o uso do tratamento precoce?”, indagou novamente Renan. “Não. O Ministério da Saúde não recomenda. O Ministério da Saúde orienta”, respondeu a secretária. O senador governista Marcos do Val (Podemos-ES) disse que o governo agiu em Manaus como em outros estados do país e apenas criou as condições para os pacientes terem acesso aos medicamentos.
“Era uma indicação: ‘Olha, quem quer fazer o uso, faça dentro da sua liberdade de, como médico, receitar e se responsabilizar pelo seu paciente’. Cada médico se responsabilizaria pelo seu paciente. Não era algo impositivo, ‘tem que’. Era: ‘Se quiser, pode fazer a solicitação que o estado solicita ao governo e o governo envia’. […]. Garanto a você que não era imposto, era sugerido”, afirmou do Val.
Na avaliação do presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD-AM), o estado do Amazonas foi usado como “cobaia” pelo Ministério da Saúde. “A troco de que esses médicos estiveram aqui? Nós temos que descobrir. A troco de que usaram o meu estado do Amazonas e Manaus para ser cobaia? Porque essa é a verdade. Cobaia. Utilizar o tratamento enquanto as pessoas morriam por falta de oxigênio na minha cidade, no meu estado? Usaram tratamento que cientificamente não colaborou com nada. Isso é crime contra a vida”, afirmou Aziz.
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