É nítido que o governo brasileiro passa a fomentar a expansão e o aperfeiçoamento de concessões aeroportuárias a partir de 2010. O movimento tem a finalidade de atrair investimentos privados que permitam a ampliação e a modernização dos aeroportos no país, passos necessários para aumentar a competitividade nacional, diminuir o custo de transporte e, claro, melhorar a experiência dos usuários do serviço.
Assistimos a leilões de sítios aeroportuários isolados e depois passamos para os leilões em lote, resultado não apenas de uma nova roupagem dada ao procedimento licitatório tradicional, mas sobretudo da competitividade do setor, que atualmente conta com uma ampla variedade de players interessados nesses ativos. Diante dessa movimentação, ampliou-se o interesse pelo tema de Concessões e Infraestrutura e, especialmente, pelas Concessões Aeroportuárias. Os cidadãos e profissionais da área jurídica em geral buscam maior compreensão do instituto e dos seus desdobramentos.
Dentre as diversas questões que permeiam a Concessão Aeroportuária, percebe-se que o enquadramento do vínculo existente entre a Concessionária e as pessoas jurídicas ou físicas que exploram atividade comercial em área localizada no sítio aeroportuário – comumente denominados de subconcessionários – tem gerado confusão. Isso, porque, no afã de (re)definir a natureza jurídica da cessão de uso de área aeroportuária no âmbito da gestão privada, alguns analistas mais apressados têm defendido o seu enquadramento, por analogia, no regime jurídico dos Shoppings Centers.
Segundo os defensores da referida tese, assim como nos Shoppings Centers, a cessão de uso de área aeroportuária para exploração comercial seria regida pela lei 8.245/91 (Lei de Locações), pois o art. 25, §2º, da Lei Geral de Concessões dispõe que às relações firmadas entre as Concessionárias e terceiros será aplicado o direito privado. Nesse cenário, os subconcessionários passariam a gozar de direitos reconhecidos pela lei 8.245/91 (Lei de Locações), dentre os quais o de constituição de ponto comercial sobre a área pública e de renovação compulsória do contrato de cessão de uso.
A análise apressada, pautada exclusivamente na leitura de dispositivos esparsos, sem contextualização e sem interpretação dos microssistemas jurídicos envolvidos, poderia, de fato, levar a crer que existe alguma razoabilidade na tese em questão. No entanto, uma avaliação mais profunda, cuidadosa e sistemática do ordenamento jurídico revela a absoluta inaplicabilidade da Lei de Locações à relação contratual de cessão de uso existente entre Concessionárias de Aeroportos e subconcessionários. Inicialmente, tem-se a própria Lei de Locações, que possui regra expressa no sentido de que ela não se aplica às locações que tenham por objeto imóvel de propriedade da União:
Art. 1º A locação de imóvel urbano regula – se pelo disposto nesta lei:
Parágrafo único. Continuam regulados pelo Código Civil e pelas leis especiais:
a) as locações:
1. de imóveis de propriedade da União, dos Estados e dos Municípios, de suas autarquias e fundações públicas;
Ora, que a concessão aeroportuária não altera a propriedade sobre a infraestrutura todos sabem. Então, como defender a aplicação de uma lei quando ela mesma contém regra que excepciona expressamente a sua incidência sobre área pública?
A regra é clara! A Lei de Locações é inaplicável a qualquer cessão de uso que envolva imóvel de propriedade de algum ente federado, independente de ser o gestor da área um ente público ou privado. Mas, antes mesmo que existisse a Lei de Locações, já havia vedação no ordenamento jurídico nacional à aplicação de “leis concernentes à locação” para imóveis da União.
Vejamos o que diz o decreto-lei 9.760/46:
Art. 87. A locação de imóveis da União se fará mediante contrato, não ficando sujeita a disposições de outras leis concernentes à locação.
Não fosse o quanto já explicitado suficiente, o Direito Regulatório afasta, de forma bastante específica, a aplicação da legislação sobre locações urbanas em “áreas aeroportuárias”, consoante dispõe o Código Aeronáutico (lei 7.565/86):
Art. 42. À utilização de áreas aeroportuárias não se aplica a legislação sobre locações urbanas.
As finalidades do legislador são claras: (i) preservar as garantias do Poder Concedente sobre o imóvel, que, diferente da relação locatícia pautada na lei 8.245/91, não gera direito à tutela judicial do ponto comercial, podendo ser reivindicado a qualquer tempo, e (ii) permitir ao gestor do imóvel maior liberdade de disposição e fruição do sítio aeroportuário para atendimento do interesse público.
No caso dos Aeroportos, a impossibilidade de aplicação da Lei de Locações é ainda mais evidente, na medida em que, ao revés do Shopping Center, trata-se de bem público de uso especial no qual (i) a execução de obras para expansão e melhoramento poderá exigir o deslocamento das atividades comerciais exercidas nas áreas cedidas e (ii) a exploração mais eficiente dos espaços cedidos propicia a ampliação de receitas a serem aplicadas na execução das melhorias contratualmente previstas, sem que para tanto, sejam necessários aumentos das tarifas cobradas dos usuários.
Qualquer alteração neste cenário normativo e regulatório afetaria a segurança e a atratividade do investimento em Concessões dessa natureza, já que colocaria em xeque o direito à gestão dinâmica do ativo, impondo entraves à destinação mais eficiente da área pública. Indubitavelmente, num cenário em que subconcessionários possuíssem direito à tutela judicial do ponto comercial através da Ação Renovatória, baseados na Lei de Locação, o interesse público estaria sucumbindo ao privado, gerando distorções na Concessão, inclusive com potencial afetação à modicidade tarifária.
Isso, pois contratos economicamente desinteressantes – do ponto de vista financeiro e também da conformação do mix de serviços e produtos do aeroporto – poderiam ser impostos à Concessionária, reduzindo, portanto, suas possibilidades de gestão e sua receita não tarifária, direta ou indiretamente. Exemplificativamente, imaginem se toda a gama de contratos de cessão de uso firmados pela INFRAERO que ainda tivessem prazo de vigência à época da transição da gestão aeroportuária e, portanto, devessem ser sub-rogados pela empresa vencedora do leilão, fossem objeto de renovação judicial compulsória à luz da Lei de Locação.
Nesse caso, a Concessão estaria claramente desvirtuada, porquanto a perspectiva de mudança, direcionada à melhoria do ativo e maior eficiência do serviço, estaria acorrentada ao passado da gestão da empresa pública, com os preços, produtos e serviços outrora contratados.
Sem dúvida, o interesse de diversos players no ativo aeroportuário e o grande investimento realizado nos últimos anos, com novas rodadas em curso, dão conta de que esse não pode ser um ambiente de incerteza jurídica, mas sim de regras claras, sem margem a analogias. Exatamente por isso o legislador, através de múltiplos diplomas legais, foi claro sobre a inaplicabilidade da Lei de Locações, e consequentemente, do regime jurídico dos Shoppings Centers, aos contratos de cessão de uso de área aeroportuária, ainda que sob a gestão privada.
Alexandre Cunha de Andrade é advogado, atuante na área de Concessões e Infraestrutura, sócio do Fraga & Trigo Advogados, pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários e em Direito e Gestão Imobiliária pela Faculdade Baiana de Direito