Por Aline Damazio e Gabriela Marotta
A rotina de isolamento social durante a pandemia do novo coronavírus impôs desafios e adversidades ainda mais duras a alguns grupos que lutam para permanecer na faculdade. É o caso dos portadores de necessidades especiais e pessoas encarceradas, que conseguiram articular ações para subsidiar a permanência nas instituições baianas de ensino superior.
“Nós não podemos saber quais dificuldades que cada pessoa está enfrentando neste momento de enfrentamento à Covid-19. Eu sei do que eu enfrentei e estou enfrentando como indivíduo universitário cego”, afirma o estudante do terceiro semestre de pedagogia da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) de Serrinha, Paulo Henrique Santos. “Eu cogitei desistir, mas encontrei acolhimento e ajuda com os professores e colegas para superar cada obstáculo diário do ensino a distância imposta de forma abrupta nesses últimos longos dias de pandemia”, continuou.
Assim como Paulo, milhares de universitários brasileiros que buscavam, até então, superar as barreiras físicas, agora também enfrentam os obstáculos tecnológicos no ensino acadêmico durante a crise sanitária provocada pela pandemia do novo Coronavírus.
Em 2018, 43.633 alunos calouros se declararam portadores de necessidades especiais nas faculdades brasileiras. Em 2019, dado mais recente possível, foram 48.520. Na Bahia, esse número aponta para 2.029 discentes matriculados, de acordo com o levantamento anual do Censo da Educação Superior, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
O estudante do terceiro semestre de pedagogia na Uneb de Serrinha, Wadson Santos, também portador de deficiência visual, resistiu aos impactos na educação em meio a pandemia da Covid-19. Ele buscou acelerar a adaptação às novas plataformas online de ensino. No entanto, sua maior dificuldade foi exatamente uma das ações necessária para contenção do vírus: o isolamento social.
“O primeiro desafio nesses últimos meses foi o de ficar distante. Nós não conseguíamos tirar as dúvidas com a velocidade de antes, como no boca a boca. Depois, entrei em uma turma numerosa e online. O resultado disso, por exemplo, foi quando o professor scaneava um texto que tinha uma imagem e meu computador, adaptado para minhas necessidades, dava erro e assim não tinha acesso ao conteúdo sem ajuda de um auxiliar, situação que antes da pandemia eu tinha autonomia. Algumas vezes eu precisava enviar o áudio de meu texto para um colega, e ele digitava para mim”, contou.
E a lista de desafio impostos a Wadson se multiplicava. “Ainda tem professores que continuam enviando material inacessível para um cego. Reclamamos, mas é a falta de costume de trabalhar com pessoas com deficiência. Essas são as provocações que precisamos superar todos os dias nas faculdades durante esse ensino a distância. Nós tivemos que nos adaptar a tudo nessa pandemia”, frisa o estudante.
Diante dos contratempos, a cultura de acessibilidade nos dias desafiadores vividos por esse grupo de universitários se tornou menos intransponível com auxílio do Núcleo de Acessibilidade e Inclusão (NAI), da Uneb, onde Paulo e Wadson estudam. Há 21 anos, o espaço congrega estudos multidisciplinares com foco na educação inclusiva. E, atualmente, atende 11 estudantes.
No entanto, as dificuldades agora são outras: plataformas de estudo online de educação não intuitivas; aulas 100% online; textos digitados com figuras que impedem a leitura por codificadores de acessibilidade; e falta de auxílio imediato para retirada de dúvidas dos deficientes durante as aulas. Esses empecilhos, até então desconhecidos, passaram a fazer parte da rotina do grupo de alunos portadores de necessidades, de maneira mais rápida do que eles pudessem se adaptar.
Diante dessa realidade, a coordenadora do Nai, professora Jusceli Cardoso, explica o papel fundamental do núcleo de apoio dentro das universidades, principalmente durante o isolamento social e ensino 100% online. “Fomos todos pegos de surpresa e precisávamos seguir com o curso. Por isso, as experiências e melhorias do ensino remoto são construídas enquanto caminhamos”, esclareceu.
“É um grande aprendizado para os professores. Nós damos direcionamento e dizemos que ele tem um estudante na turma em determinada condição com baixa visibilidade, surdo, mudo … E eles buscam dar uma aula mais inclusiva. E assim, os alunos com deficiência também ensinam a gente”, ressalta.
No entanto, a realidade ainda está aquém do necessário quando se fala em inclusão. A permanência de alunos deficientes nas instituições de ensino superior, além de dever ser estimulada, é garantida por lei, como destaca o professor e deficiente visual José Márcio Soares Nunes do Instituto de Cegos da Bahia (ICB) e do Centro de Apoio Pedagógico do Deficiente no Estado (CAP).
“Quando não vemos uma política de estado ampla voltada para portadores de deficiências, as dificuldades se ampliam mais ainda, não por conta da deficiência, o que determina o contexto são as oportunidades sociais. Temos um arcabouço jurídico, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência nº L13146 de 2015, a Conversão Internacional da Pessoa com Deficiência, a Lei de Diretrizes básicas de Educação, todas garantem o nosso acesso e permanência nas universidades”, destaca o especialista.
Mudanças curriculares e inovação no modelo de ensino
Com o objetivo de tratar de questões de acessibilidade e inclusão de pessoas com Necessidades Educacionais e Especiais (NEE), foi planejado e implantado o Núcleo de Acessibilidade e Inclusão (NAI), na Uneb, no interior da Bahia.
O espaço promove estudos multidisciplinares com foco a educação inclusiva, pesquisas e projetos de extensão, tanto com docentes e discentes da unidade, quanto com discentes do Ensino Médio e profissionais que se interessam pela inclusão social.
O núcleo foi idealizado pelas servidoras Jaciete Barbosa, Márcia Raimunda e Jusceli Cardoso em 2000, e fomenta a constituição de um espaço destinado para acolhida, inclusão e garantia de apoio pedagógico aos graduandos com alguma deficiência.
Entre as ações do núcleo estão: atividades diversificadas nas salas de aula dentro e fora da universidade; programa de acolhimento aos ingressantes; agendamento psicopedagógico; diálogos com funcionários do departamento sobre inclusão e acessibilidade; formação dos servidores do campus para inclusão; interfaces com comissão de validação de cotas da UNEB; curso de áudio-descrição e orientação e mobilidade; seminários temáticos abertos à comunidade; orientações de TCC e publicações diversas.
Mais barreiras resultam e mais superação
A pandemia foi ainda mais desafiadora para quem convive, ainda, com barreiras físicas, construídas para serem intransponíveis, como é a realidade dos estudantes privados de liberdade.
Um levantamento da Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização (Seap) aponta que, dos 13.263 custodiados nas cadeias da Bahia, 11 cursam faculdades no Estado. Eles estão custodiados nas cidades de Jequié, Itabuna e Salvador.
Serão dois futuros advogados; dois pretensos administradores de empresas; três futuros engenheiros; dois pressupostos professores; um contabilista em preparação e um psicólogo.
O que os números não conseguem traduzir é a esperança dos homens e mulheres que planejam sair do sistema penitenciário sem carregar o estigma de presidiário. O desejo é de ser visto como um novo universitário e novo profissional em potencial, que contribui com a sociedade.
“Lá fora [em liberdade] eu ia fazer educação física, mas aqui [Conjunto Penal de Lauro de Freitas] vou cursar Direito para trabalhar em cartórios, pois descobri, no tempo que estou aqui, que tem essa demanda na cadeia”, conta animado o detento Alsemo *, alocado no Conjunto Penal de Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador.
Como Anselmo, a dezena de custodiados que estão inseridos nas universidades e estão dentro dos presídios da Bahia revela a expectativa de mudança de parte da população carcerária, vivência acompanhada de perto pela professora Liana Rezende, que trabalha há 20 anos com educação.
“Quando podemos ver o interesse deles [presos], nós percebemos a possibilidade de abrir essa “janela” dos cursos superiores, daí fizemos uma parceria com a Unopar EAD. Foram 25 internos que estavam aptos. Iríamos fazer essa ponte, todo o processo de prova à distância, inscrição deles e também foi adaptada uma estrutura de sala de aula para ensino à distância e, assim, auxiliar de forma decisiva na manutenção desse aluno no curso superior. Só que precisou parar por um tempo por conta da pandemia”, disse.
A pedagoga Alcione Lima explicou como foi desenvolvido o processo de interesse dos custodiados pela educação à distância e implementação de espaço para estudo dos custodiados no conjunto penal. “Nossa sala chegou a ter 25 alunos em nivelamento para prestar ENEM, mas em 2020 aconteceu a pandemia e agora precisamos nos reunir e procurarmos ver uma forma de adaptar e atende esses alunos, não só pelo conhecimento por remissão, pois a cada três dias estudados, é um dia a menos na pena deles [custodiado]”, contou a pedagoga.
“Achamos melhor desenvolver as aulas remotas. Com isso, o quantitativo aumentou. Na aula física só podíamos ficar com 25 [alunos], e com o ensino EAD eles estudavam no pátio. Agora o número é cada vez maior de estudantes que se interessam pela aula. As atividades são autoexplicativas e tem exercício para ver se aprenderam. Teve um aluno que conseguiu alcançar 660 pontos no último Enem. Tem internos que leem cinco a seis livros no mês. E assim foi possível ter pessoas preparadas para cursar uma faculdade que eles escolherem”, disse.
Os docentes que ensinam no complexo descobriram nas aulas diárias com os presos que a remissão – estudo ou trabalho que detentos fazem dentro da cadeia que resultam em regressão de dias na pena – incentiva ainda mais o aprendizado. “Não temos 100% de adesão, mas é um algo que está crescendo. Tem muitos internos que querem progredir, crescer. Eles reconhecem que erraram e querem progredir e, assim, sair daqui melhores”, revela a professora Liana Rezende.
De acordo com o diretor do Conjunto penal de Lauro de Freitas, Archimedes Benício Leite Neto, a educação à distância dos custodiados funciona ainda como uma atividade de ressocialização, que a unidade prisional ainda pretende ampliar.
“Para ampliar esse processo, nós vamos aplicar um teste nivelador especifico para saber quantos internos temos com nível superior, médio, e analfabetos. A pandemia fez perder um pouco do processo de ressocialização que era muito forte na unidade. Mas, com certeza, estamos em retomada”, disse.
Essa união entre professores e direção dos conjuntos penitenciários contribui para a ressignificação do estigma que ex-detentos carregam em seu processo de ressocialização, dando a eles uma nova chance de inserção na sociedade. “O Coronavirus suspendeu o acesso à faculdade, mas logo que possível de ser retomado eu vou cursar direito”, refletiu emocionado Anselmo*
*** Os nomes das fontes foram modificados
Foto: JorgeAraujo/ Fotos públicas