Menos de 10 anos antes daquele 26 de março de 1991, a ideia de viver numa democracia estável na América Latina não passava de um conto dos mais baratos que o pior do realismo fantástico do subcontinente era capaz de produzir. Como se não bastasse, pensar uma sociedade local que gozasse de estabilidade econômica significava um desafio maior que uma viagem a Saturno.
Mas foi nesse dia, em meio a esse cenário, que Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai firmaram o Tratado de Assunção, que estabelecia a criação do Mercado Comum do Sul, o Mercosul, e permitia aos quatro vizinhos brincarem também de bloco econômico, já que as zonas de livre comércio eram o hit daqueles primeiros anos de mundo globalizado.
Naquela altura de fim de século XX, todo mundo que quisesse não ser ignorado no mundo pós Guerra Fria precisava de um bloco para chamar de seu. Os sul-americanos, claro, não queriam ficar do lado de fora da festa ao verem, entre outros, os exemplos da Europa, que ao longo de décadas havia partido do seu Benelux para em 1992 dar à luz a União Europeia, e dos “irmãos” do Norte, com Estados Unidos liderando o Nafta (sigla em inglês para Acordo de Livre Comércio da América do Norte) com a parceria do Canadá e do México.
Trinta anos mais tarde e alguns processos de dolarização, corralitos, vitórias da esquerda, depois da direita, dinastias políticas e impeachments depois, a relação estabelecida naquele dia em Assunção deve ser uma ferramenta importante para a recuperação econômica depois da crise sanitária do coronavírus, acreditam especialistas ouvidos pela CNN Brasil. “Nos pós-pandemia, não haverá solitários. Todos precisarão de todos”, afirma o jurista Clayton Vinícius Pegoraro de Araújo, doutor em direito das relações econômicas internacionais e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Tenho certeza de que o Mercosul tem essa força”, completa.
O momento atual pode parecer de desconstrução dos sistemas globais. Mas a história mostra, como ocorreu nos períodos que sucederam as guerras mundiais, que o fortalecimento das relações internacionais e econômicas entre os países é essencial para restabelecer alguma normalidade depois de uma grande crise. “Precisaremos gerar uma quantidade muito grande de negócios para retomar o patamar anterior à pandemia”, analisa Araújo.
Para esse movimento dar certo na América do Sul, contudo, o Brasil precisa se posicionar. Dono da maior economia, do maior contingente populacional e do maior território no bloco, cabe ao país dar as cartas. “Há barreiras a serem vencidas em curto prazo, como as dificuldades criadas pela animosidade do governo brasileiro com o atual governo argentino e a desastrosa condução do combate à pandemia”, contextualiza o jurista e cientista político Enrique Carlos Natalino, pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).
“Mas creio que o Mercosul representa um acerto de contas do país com a sua vizinhança e com a América Latina”, prossegue Natalino. “É uma oportunidade histórica de fazer da nossa geografia um ativo político, econômico e diplomático no mundo que vem aí”, completa. Em um cenário pós-pandêmico, o bloco sul-americano pode inclusive encontrar meios para crescer e conquistar espaços. Estados Unidos, China e Rússia digladiam-se em seus próprios conflitos, enquanto a União Europeia deverá estar mais focada em uma recuperação interna, já que ainda sente os efeitos do “Brexit”, a saída do Reino Unido do bloco.
“[Tudo] vai depender do ritmo de reabertura das economias. Há dentro do bloco facilitadores ao comércio internacional e garantidores legais e financeiros”, comenta o jurista Cláudio Finkelstein, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), vice-presidente da Sociedade Brasileira de Direito Internacional e autor do livro “O Processo de Formação de Mercados de Bloco”. No entanto, antevê o professor, o mundo pode vivenciar movimentos protecionistas, que prejudicam o aprimoramento e desenvolvimento do comércio dentro do bloco ou do bloco com outras nações.
Quando Jair Bolsonaro assumiu a presidência, ventilou-se a ideia de que o Brasil iria sair do Mercosul. Declarações nesta linha vieram inclusive do ministro da Economia, Paulo Guedes. Com o tempo, a temperatura baixou. Em dezembro de 2020, o presidente afirmou que as divergências eram coisas do passado e que o momento é de atuar com “pragmatismo”.
Mas analistas concordam que não houve, até aqui, um esforço institucional para o fortalecimento das relações. “O Mercosul não tem qualquer relevância na visão de mundo que norteia a política externa do governo Bolsonaro”, resume o cientista político e de relações internacionais e professor da Universidade Federal de Sergipe, Corival Alves do Carmo, autor do livro “O Brasil e a América do Sul: Relações Regionais e Globais”. “Isso pode ser positivo, porque significa que também não vai se fazer nada para acabar formalmente com o bloco. Assim, um próximo governo brasileiro não precisa começar a reconstrução do zero”, afirma.
“O governo Bolsonaro desconsidera o Mercosul, não existe nenhum esforço diplomático no sentido de fortalecer essa união”, acrescenta Finkelstein. Para o jurista, a política interna é que está dominando o mercado externo no Brasil, e não o contrário: “Para esse governo, o cliente nem sempre tem razão.”. Finkelstein argumenta que o governo federal deveria empreender mais esforços no sentido de fortalecer o bloco, com investimentos não só financeiros, mas também políticos para que a “alavancagem negocial voltasse a ser relevante para o Brasil”.
Coordenador da pós-graduação em relações institucionais e governamentais da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Brasília, o cientista político Márcio Coimbra dirigiu a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil) no início da gestão Bolsonaro. Ele ressalta que a maneira como o atual governo deixa de valorizar o Mercosul pesou em sua decisão de sair do cargo.
“O Mercosul não tem característica política, é um bloco comercial. Mas, por sua relevância, sempre tem desdobramentos políticos importantes. E Bolsonaro não soube usá-lo de forma inteligente”, diz Coimbra, para quem o escritório da ApexBrasil na América do Sul, que fica em Bogotá, deveria estar em Buenos Aires. “Na verdade, a ApexBrasil deveria ter uma rede de escritórios, com custos mais leves usando inteligência comercial. O Brasil não pensou estrategicamente.” Coimbra acrescenta que a nomeação de militares na agência prejudicou o desempenho no comércio internacional.
Os especialistas ouvidos pela CNN concordam que não é hora de se isolar ou de limitar parcerias. O processo de negociação do Acordo Comercial Mercosul-União Europeia está em vias de ser apreciado pelo Parlamento Europeu. Ao se negar a atender demandas de uma política ambiental mais clara e a fortalecer o Mercosul, o Brasil pode ter muito mais a perder do que a simples cooperação dos vizinhos. “Nesse sentido, as contradições do governo Bolsonaro minam até as possibilidades de aprovação de um acordo de livre-comércio que atende à cartilha liberal do ministro da Economia”, explica o cientista político Enrique Carlos Natalino.
A saída, sobretudo num cenário como o atual, é não polarizar, priorizar políticas de Estado em vez de políticas de governo e ampliar as possibilidades de acordos. “Apostar fichas na bilateralidade, nesse momento, não é uma boa alternativa para o Brasil. Se nossos parceiros de Mercosul não tiverem bom desempenho, isso não será bom para nós”, completa Araújo.
Essa relação fica clara especialmente no caso de Brasil e Argentina. Nos momentos em que houve mais convergência no eixo Brasília-Buenos Aires, o Mercosul avançou. Isso ocorreu, por exemplo, nas gestões de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Carlos Menem (1989-1999) e nas de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Nestor Kirchner (2003-2007). A CNN Brasil questionou o Itamaraty sobre a relação do Brasil com o Mercosul e o futuro do bloco, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
Acordo com a Europa
O Mercosul teve o êxito de, ao longo dessas três décadas, ter aberto importantes oportunidades para a inserção competitiva das economias dos países membros na globalização, mas jamais conseguiu se tornar uma área de livre circulação de fato, como estava previsto no tratado original. Chegou-se a um ponto de união aduaneira, ou seja, determinação de tarifa externa comum, um estágio anterior ao vislumbrado originalmente pelo plano.
Como também não há reconhecimento de diplomas para que haja uma livre circulação de profissionais dentro do bloco, houve pouca transferência de tecnologia e profissionais. Mas foram conquistados avanços institucionais na relação entre os países, em que se pavimentou uma política de cooperação e integração na região.
Firmado em junho de 2019, o acordo do Mercosul com a União Europeia — mercados que representam 25% da economia do planeta — entra para a história como um ponto alto dos 30 anos do bloco. Propagandeado como um feito positivo da política internacional do governo Bolsonaro, a negociação começou 20 anos antes.
Mas o acordo até hoje não entrou em vigor. Precisa ser ratificado pelo Conselho Europeu e pelo Parlamento Europeu. Há resistência — França e Áustria já se posicionaram contra os termos. Os entraves são principalmente devido à exigência de compromissos de preservação ambiental. Na época das negociações, o governo brasileiro chegou a divulgar que o tratado representaria um incremento de R$ 336 bilhões em 15 anos ao PIB brasileiro.
Na quarta-feira (24), em depoimento à Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, insinuou que a União Europeia está agindo assim por conta de um protecionismo disfarçado. Ele afirmou, todavia, que o Mercosul está preparado para as contrapartidas exigidas. “Tem que ser obviamente algo negociado, uma coisa recíproca, sem comprometermos nosso setor exportador e agrícola”, disse o ministro. “O mundo tem de entender que ele é sustentável. O fato de [os europeus] estarem demorando talvez seja porque o motivo não seja esse.”
Foto: Isac Nóbrega/PR