Na corrida por tornarem-se superapps, aplicativos lançam mão do relacionamento que têm com clientes e parceiros para oferecer novos serviços, embaralhando a lógica da concorrência. É o caso do RappiBank, da 99Pay ou do UberChip, lançados por três dos serviços mais populares no Brasil. Segundo as empresas responsáveis, as iniciativas têm o objetivo de fazer com que cada vez mais usuários possam resolver problemas sem precisar mudar de plataforma. “É a lógica de ecossistemas que surgiu na China com o WeChat”, explica Renato Mendes, professor na pós-graduação de marketing digital do Insper e da PUC-RS e especialista em temas como startups e empreendedorismo.
O aplicativo chinês de mensagens inaugurou a tendência ao reunir também jogos, pagamentos e outras tarefas do dia a dia no mesmo lugar. “A dinâmica de expansão corporativa está caminhando por aí, tanto em startups, quanto de grandes players. Eu resolvo um problema com eficiência, construo relação de confiança, e amplio meus serviços”, diz Mendes. Ele faz a ressalva, no entanto, de que as novas verticais de atuação precisam estar, em alguma medida, relacionadas ao foco da empresa. “Sou um aplicativo de corridas de carro, vou vender produto esportivo? Não. Mas mapear as necessidades de quem já é meu cliente e que eu não estou atendendo hoje. É uma forma de pegar um pouco mais de dinheiro daquele usuário que você já conhece os hábitos”.
Ele cita o exemplo do Mercado Livre, que surgiu apenas como plataforma para compra e venda de produtos usados. Assim que o serviço se consolidou no setor, passou também a facilitar os métodos de pagamento e a logística de entrega, gargalos de sua atuação inicial. Identificar demais “dores” dos clientes, jargão usado pelo mercado, é mais fácil hoje com a quantidade de informações coletadas pelos meios digitais. Quanto mais se usa um aplicativo, mais dados disponibilizamos para a empresa em termos de hábitos de consumo: o que é pedido, como se paga, por onde a população se desloca etc.
Ainda assim, as empresas que falaram à reportagem dizem manter contato constante com clientes e parceiros, em grupos focais ou em canais diretos de comunicação. “Quando começamos lá atrás, já tínhamos essa preocupação de colocar o usuário final no centro para entender as demandas”, diz Fernando Vilela, diretor de marketing do Rappi. “Nascemos focados nas conveniências de bairro, mas analisar o que era pedido pelo aplicativo levou a gente a criar novas verticais, como a opção de pedir em restaurantes, o Rappi Cash, Petz e por aí vai.”
Mais recentemente, a startup colombiana lançou o RappiBank, banco digital que oferecerá cartão de crédito e empréstimo para empresas e pessoas físicas. “Vínhamos observando um volume grande de transações pelo aplicativo. Dado que a gente já tem parte do convívio transacional, faz sentido ter o ecossistema completo para facilitar para o cliente. O sistema financeiro no Brasil não é um mercado atendido com excelência; e acho que todo mundo concorda [com isso].”. A Uber, por sua vez, se voltou para os motoristas parceiros ao anunciar a Uber Conta e o UberChip nas últimas semanas.
A primeira é uma conta digital exclusiva para motoristas e entregadores parceiros, operacionalizada pelo banco Digio. Com ela, os motoristas do aplicativo recebem os repasses das corridas de forma instantânea. Já o Chip, por ora disponível apenas em São Paulo, foi viabilizado por parceria com a Surf Telecom, e funciona como um plano pré-pago que permite usar o app sem descontar dados da franquia de internet móvel.
“Os dois serviços são frutos de um trabalho das equipes em contribuir para redução dos custos de quem realiza viagens de carro e entregas usando a nossa plataforma”, diz Claudia Woods, diretora geral da Uber no Brasil. Mais de 1 milhão de pessoas usam o aplicativo hoje para ganhar dinheiro. Para atendê-las, a Uber tem um programa de vantagens para parceiros. “Ele é, em parte, dedicado a identificar essas oportunidades e também monitorar a implementação dessas parcerias. Nós realizamos pesquisas periódicas e também acompanhamos a utilização dos benefícios em si”, diz Woods.
Mendes ressalta a importância, para esses aplicativos, de atenderem a todos os elos da cadeia: fornecedores, como restaurantes e mercados, parceiros, caso de entregadores e motoristas, e o cliente final. “A dinâmica é a de que se um desses pilares estiver frágil, não vou conseguir ser bem-sucedido. Na prática, todos viram cliente, porque vão gerar receita também”, diz Mendes. O especialista também chama a atenção para a vantagem de olhar para os parceiros: “Monetizar com alguém dentro de casa é mais fácil do que brigar pela aquisição de novos clientes lá fora. Outro ponto é a importância de fortalecer o ecossistema: se você é um entregadora que atende por diversos aplicativos, vai acabar dando preferência para o que te traz mais vantagens”.
No caso da 99, a carteira digital que começou apenas para motoristas, passou a ser disponibilizada agora também a clientes. “Nosso papel é facilitar interações entre usuários, parceiros e motoristas”, diz Maurício Orsolini Filho, diretor da carteira digital. “No caso, a conta digital traz mais segurança, ao reduzir o uso de dinheiro físico, mas também, considerando a pandemia, diminuindo a interação física”. A 99 está hoje em 1.800 municípios brasileiros. São 750 mil motoristas e 20 mil passageiros ativos, ou seja, que usaram o aplicativo no último mês.
“Isso tem um efeito de capilaridade enorme, tudo vira dado que podemos usar para melhorar a plataforma”, diz Filho. “Acertamos a estratégia ao olhar para dentro. A carteira digital serve como cola que consegue juntar as unidades de negócio da 99 e gerar usabilidade melhor para todos.”. O primeiro resultado dessa corrida, alerta Renato Mendes, é o fato de que empresas de diferentes segmentos passarão a concorrer, a partir do momento em que cruzam a linha para jogar em outros terrenos. “A lógica da concorrência nunca foi tão complexa, nessa busca de construção de ecossistema teremos conflitos que antes não teríamos. Como a Apple lançar um carro e, de repente, virar concorrente da Volkswagen”, diz Mendes.
Já o desafio, dizem os empreendedores, está em manter a qualidade dos serviços, a partir do momento que a empresa caminha por um território que não é seu principal foco de atuação e passa justamente a competir com entidades há anos no setor. “Não podemos nos perder na infinidade de opções que há. São muitas oportunidades na mesa, mas temos que criar um exercício constante de priorização do que usuário de fato precisa, se não você morre”, diz Vilela, da Rappi. “Lançar uma nova vertical é o caminho fácil da inovação, o caminho difícil é garantir a eficiência do que estamos fazendo e nos propomos fazer. Inovar dentro daquilo que já a gente faz.”. Outro desafio, dizem eles, é o de comunicar aos clientes sobre mudanças.
“As pessoas questionam: por que a 99 está fazendo isso? Qual vantagem eu tenho?”, diz Orsolini Filho. “Garantir uma história bem contada é nossa missão, por isso começamos devagar, atuando próximo do nosso foco, e gradualmente lançando serviços secundários ou terciários, no momento que fizerem sentido para os usuários.”
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