A solução encontrada pelo Ministério da Saúde para evitar que milhões de testes para detectar a covid-19 percam a validade pode não ser suficiente para evitar que parem no lixo. Após o Estadão revelar, em novembro, que 6,86 milhões de unidades estocadas em um armazém da pasta venceriam entre dezembro e janeiro, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) prorrogou a vida útil dos exames por mais quatro meses, mas o governo segue com dificuldades para distribuí-lo no Sistema Único de Saúde (SUS). Agora, o desafio é zerar o estoque que ainda está parado, de 6,5 milhões de testes, entre abril e maio. O número é próximo da quantidade usada em nove meses de pandemia, de 7,9 milhões.
O encalhe das unidades estava desenhado ao Ministério da Saúde desde maio. Naquele mês foram feitos os primeiros alertas da área técnica sobre a falta de planejamento nas compras de exames do tipo RT-PCR, o mais eficaz para o diagnóstico, além de sugestões de suspender contratos enquanto a rede de análise do SUS era equipada. Ignorada pela equipe do ministro Eduardo Pazuello, que assumiu a pasta naquele mês, a orientação poderia evitar que os milhões de testes ficassem ociosos por meses por causa da falta de insumos necessários para completar o diagnóstico, como os cotonetes “swab”, e máquinas mais modernas para processar as amostras de pacientes.
Mais de sete meses após os avisos, o ministério acumula compras frustradas ou tardias destes insumos e ainda corre para equipar a rede de diagnósticos. O Tribunal de Contas da União (TCU) vê “irregularidades preocupantes” e cobra explicações. Além dos 6,5 milhões de testes RT-PCR que seguem encalhados no galpão da pasta no Aeroporto de Guarulhos, há ainda unidades em posse dos Estados. O número estocado é incerto, mas pode alcançar três milhões de unidades, segundo estimativa de gestores de saúde.
O ritmo de exames no Sistema Único de Saúde (SUS) aumentou de 27,3 mil análises diárias, em outubro, para 57,6 mil nas últimas semanas, mas há insumos em falta nos laboratórios. Um dos produtos escassos é o reagente de extração do RNA das amostras, cujo estoque atual do ministério permite apenas 390 mil análises. A pasta ainda corre atrás da compra de mais 6 milhões de reagentes desse tipo. Outra barreira para uso do estoque é que o modelo de teste encalhados não é compatível com parte da rede de laboratórios da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que passa por adaptações ao produto.
O exame que segue no armazém do ministério custou R$ 275 milhões aos cofres públicos (R$ 42 por unidade) e deve ser mantido em temperatura de 20 graus negativos. O RT-PCR é um dos testes mais eficazes para diagnosticar a covid-19, pois detecta o vírus ativo no organismo. A coleta é feita por meio de um cotonete aplicado na região nasal e faríngea (a região da garganta logo atrás do nariz e da boca) do paciente. Na rede privada, o exame custa de R$ 290 a R$ 400.
Em nota, o ministério afirma que pretende distribuir e utilizar todos os testes antes do vencimento. A meta do governo era de chegar ao fim de 2020 com mais de 24 milhões de exames RT-PCR realizados, duas vezes a mais do que conseguiu testar até hoje. Para Adriano Massuda, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) e ex-secretário executivo da Saúde, não há estratégia nacional de testagem. Ele afirma que as falhas de planejamento e logística são reflexo do desmonte de áreas técnicas do ministério. “É uma mistura de despreparo, desconhecimento da complexidade da estrutura do SUS, da atuação interfederativa, e arrogância. Por achar que ‘sou especialista em logística, eu domino o tema’. Isso promoveu a substituição de áreas”, disse Massuda.
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