O programa de socorro a estados e municípios para enfrentamento da pandemia apresentou resultados desiguais entre esses entes da Federação. Enquanto algumas administraç ões receberam recursos mesmo sem ter tido perda de arrecadação, outras não receberam dinheiro suficiente para compensar a queda nas receitas. Esse foi o caso de oito estados, incluindo os quatro do Sudeste, e três capitais.
Além disso, a distribuição de recursos não teve ligação com as necessidades desses locais para enfrentar a pandemia, quando se considera a relação entre transferências e locais com maior número de mortes por habitante. As conclusões são parte de uma nota técnica da Rede de Pesquisa Solidária, que reúne pesquisadores de instituições públicas e privadas, como a Universidade de São Paulo, o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e a Fundação Getúlio Vargas, com base nos Relatórios Resumidos da Execução Orçamentária para o 1º semestre de 2019 e de 2020. Os dados foram atualizados pela inflação do período.
Projeto de lei complementar aprovado em maio deste ano criou o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus, que destinou o valor fixo de R$ 60 bilhões da União para estados e municípios de forma a compensar perdas de arrecadação, em quatro parcelas, pagas de junho a setembro. A divisão da maior parte do dinheiro foi vinculada ao tamanho da população.
De acordo com a lei, a destinação de R$ 50 bilhões é livre. Os outros R$ 10 bilhões devem ir obrigatoriamente para saúde e assistência. Desse valor, apenas R$ 2,8 bilhões seguem critério que considera a taxa de incidência da Covid-19 apurada pelo Ministério da Saúde (o restante também depende do tamanho da população). Para os pesquisadores, uma possível extensão do programa deveria levar em conta uma distribuição mais equilibrada dos recursos.
“Se houver, e há uma pressão para que no ano que vem haja também algum tipo de socorro, não faz sentido manter um critério que não foi o mais justo. Precisa repensar se a calibragem não pode ser mais focada, mais justa, mais eficiente e equânime”, diz a coordenadora do trabalho, Ursula Dias Peres, professora de Gestão de Políticas Públicas da EACH/USP (Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo).
“Houve um temor da União de que, ao criar um critério ajustado pela perda de receita, ela ficasse comprometida com uma grande transferência, porque todo o mundo falava que a queda na arrecadação seria muito brutal. Achou-se por bem definir um valor fixo, mas isso não permitiu um ajuste para garantir equidade entre estados e capitais.” A maioria das capitais recebeu transferências federais maiores que as perdas na arrecadação (considerando as principais fontes de receita) no semestre. As exceções foram Florianópolis (SC), Rio de Janeiro (RS) e João Pessoa (PB). Na média, as receitas cresceram 4% no semestre.
Se considerado apenas o terceiro bimestre, período em que a arrecadação foi mais afetada pela pandemia e em que foi paga a primeira parcela do socorro, houve estabilidade na receita corrente líquida. Oito estados não conseguiram compensação pelas perdas: São Paulo, Goiás, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Paraná, Santa Catarina e Ceará. Os dois primeiros, no entanto, foram os mais beneficiados por outra medida, a suspensão do pagamento das dívidas com a União, já que estão entre os maiores devedores em valores absolutos. Na média, os estados mantiveram as receitas no semestre, mas tiveram queda de 3,6% em maio e junho.
“A suspensão do pagamento das dívidas é um auxílio ainda mais desigual, até mais do que o das transferências, bem concentrado em alguns poucos estados e capitais. Também são recursos livres, que escapam de qualquer tipo de vinculação”, afirma Fábio Pereira dos Santos, técnico da Câmara Municipal de São Paulo que também participou da elaboração do trabalho. Outro ponto destacado pelos pesquisadores é que o socorro não foi vinculado a despesas específicas. Quando a receita tem como origem a arrecadação de impostos, há percentuais de aplicação obrigatória em saúde e educação.
No caso da saúde, o trabalho mostra que as despesas subiram 10% nas capitais e 16% nos estados em relação ao primeiro semestre do ano passado, um gasto extra de R$ 8,7 bilhões no total. Na educação, caíram cerca de 5% nos dois tipos de localidade (-R$ 3,9 bilhões). Os dois movimentos estão relacionados ao aumento da demanda por serviços hospitalares e ao fechamento das escolas.
Também cresceram as despesas com inativos —aumento de 5%, ou R$ 4,3 bilhões no gasto das previdências estaduais. Nas contas das capitais também se destacou o crescimento de 7% na despesa com transportes (mais R$ 199 milhões), por causa da compensação com o subsídio maior devido à queda no movimento de passageiros, por exemplo. O trabalho destaca ainda a queda na receita dos principais tributos nessas esferas de governo. Nos estados, houve redução de 18% no ICMS, principal tributo estadual, no terceiro bimestre, e queda de 6% no semestre, ambos em relação ao mesmo período de 2019.
Nas capitais, houve queda de 20% do ISS (imposto municipal sobre serviços) no bimestre, mas apenas 2,6% no semestre. Alguns tributos sobre propriedade sofreram mais. Houve queda de 27% no ITBI, que tributa transferência de imóveis, no bimestre (-15% no semestre). No IPVA, que tem receita mais estável por conta dos veículos usados, mas também é afetado pelos novos licenciamentos, houve redução de 7,5% no bimestre (-3% no semestre).
Três das quatro parcelas do programa serão pagas no segundo semestre, período em que o comportamento das receitas é considerado incerto pelos pesquisadores. Por isso, eles afirmam que ainda cedo para concluir que o dinheiro será suficiente para cobrir as perdas. “Ainda precisaria de, pelo menos, mais um bimestre para ter uma visão da necessidade [de mais recursos]”, afirma a coordenadora do estudo. “Se o ICMS e o ISS demorarem muito a reagir, provavelmente em outubro, novembro e dezembro vai se abrir um buraco nas contas de estados e capitais. O auxílio parece, do ponto de vista global, relativamente suficiente para cobrir as perdas até setembro, mas o que vai acontecer depois a gente não sabe”, diz o assessor da Câmara Municipal de São Paulo.
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