A Bahia é segundo estado do Brasil que mais mata em operações policiais, atrás somente do Rio de Janeiro e à frente inclusive de São Paulo, estado mais populoso do país. A informação é da pesquisa realizada pela Rede de Observatórios da Segurança do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), que traz dados preocupantes em relação à atuação da polícia baiana e o racismo estrutural na sociedade brasileira. Segundo o estudo, 32% das ações da polícia baiana resultam em mortos e feridos e metade das chacinas que aconteceram no último ano foi por ocorrência policial.
O estudo envolveu cinco observatórios no Brasil – Bahia, Pernambuco, Ceará, Rio de Janeiro e São Paulo – que analisaram os dados de seus respectivos estados. Entre julho de 2019 e maio de 2020, a rede, criada em maio do ano passado, analisou 12.599 eventos ligados à segurança pública e casos de violência que foram noticiados por veículos de imprensa e que estiveram nas redes sociais, divididos em 16 categorias: policiamento, eventos envolvendo arma de fogo, feminicídio e violência contra a mulher, violência contra crianças e adolescentes, chacinas, racismo e injúria racial, corrupção policial, intolerância religiosa, violência contra LGBTI+, sistema penitenciário e socioeducativo, entre outros. As ações policiais representaram 56,2% das notícias coletadas pela pesquisa.
Foram 24 chacinas registradas neste período na Bahia, o segundo maior número do levantamento, perdendo apenas, de novo, para o Rio de Janeiro, que teve 51. Foram 84 mortos em episódios deste tipo na capital baiana, sendo 75 homens e 9 mulheres. A maioria mora em bairros periféricos, liderados por Lobato e São Cristóvão. A pesquisa também monitorou 1.015 ações policiais no Estado, que geraram, ao todo, 262 mortes (sendo duas de crianças e adolescentes) e 70 feridos no último ano. Ou seja, quase um terço das operações geram vítimas ou feridos. O Rio de Janeiro liderou de novo o ranking, deixando 483 mortos. E, mais uma vez, quem mais sofreu foi a população da periferia: foram 15 mortes em São Cristóvão, 13 em Cajazeiras, oito em Lobato, seis na Cidade Nova e quatro em: Sussuarana, Mata Escura, Calabar, Cabula, Boca do Rio e Águas Claras.
A pesquisadora e cientista social Luciene Santana, que ajudou a coletar os dados da Bahia, ressalta que a amostra utilizada em cada estado não é a mesma, por conta da divergência na cobertura jornalística dos casos policiais em cada unidade federativa. Porém, mesmo com uma amostra menor que a de São Paulo (foram 1.015 na Bahia contra 2.210 em São Paulo), o índice de óbitos por operação é de 25% pela polícia baiana, contra 9,4% da polícia paulista. Isto é, tanto em número absolutos quanto comparativos, os policiais baianos matam mais do que os paulistas em operações.
O especialista em estratégia e segurança pública Sandro Cabral, que é também professor da Universidade Federal da Bahia, comenta que os dados refletem o modus operandi da polícia no Brasil, com o qual ele discorda. “A atividade policial ainda tem uma lógica de confronto, em detrimento de ações integradas, de inteligência e colaboração de diferentes forças policiais”, avalia o professor. “Violência não se combate com violência e não deve ser utilizada como método”, completa Cabral.
O professor também pontua que é preciso uma investigação mais transparente dos casos de confronto das operações policiais que geram vítimas, a partir de corregedorias independentes, apesar de reconhecer que existe um esforço. “Na Bahia você tem um esforço de independência, mas a PM tem a corregedoria própria. Não tem investigação independente, são eles vigiando eles próprios”, esclarece Cabral. Por conta disso, ele afirma que a saída é investir em sistemas de inteligência e transparência de dados, para que haja uma apuração isenta e com entendimento dos motivos para tais ações.
O ponto central para a análises de todos os eventos coletados pela Rede foi o racismo, que é o foco do relatório. Os pesquisadores constataram um “impressionante silêncio” sobre o tema na mídia: apenas 50 dos 12.599 episódios analisados tiveram relação com o racismo e injúria racial, o que representa 0,4% da amostra da pesquisa. “A gente buscou capturar os eventos que são pouco monitorados pelas instituições que trabalham com segurança e com o que não é dito na cobertura da mídia”, explica o historiador Eduardo Ribeiro, que coordena o Observatório de Segurança da Bahia.
A Secretaria de Segurança Pública da Bahia, por meio de nota, informa que as mortes ocorridas durante o confronto são investigadas pela corregedoria da instituição que o que servidor pertence. “O papel do policial é salvaguardar vidas, a dele e a da sociedade. Qualquer ação que fuja dessas premissas é fortemente condenada pela pasta”, disse a instituição. A SSP ainda pontuou que tem atuado de maneira firme contra a má conduta policial: “o aumento no registro de revides contra a polícia tem sido observado com preocupação pela pasta, que tem reforçado o investimento em equipamentos de ponta para a proteção dos seus servidores”.
Outra questão evidenciada pelo levantamento foi que Salvador é a segunda cidade nesses cinco estados com mais casos de homicídios envolvendo crianças e adolescentes. A capital baiana registrou 16 mortes – duas delas em operações policiais – e ficou atrás somente de Fortaleza (CE), onde o número chegou a 27. Dos 660 eventos de violência de menores, 132 foram na Bahia, o que colocou o estado em terceiro lugar, atrás de Rio de Janeiro (155) e Pernambuco (151).
A coordenadora executiva da Cedeca-BA (Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Yves de Roussan), Luciana Reis, afirma que esse cenário, já naturalizado, retrata o descaso para efetivar uma política pública que proteja os jovens, que não os extermine.“Não se pode criminalizar a infância”, diz a coordenadora. “Não se pode partir do pressuposto de que todas e todos estejam envolvidos com a criminalidade e a partir daí se justifique homicídios contra a população infanto juvenil”, completa Luciana, ao citar que as maiores vítimas são os menores moradores de bairros periféricos.
A Bahia também é o segundo estado, no estudo, que mais tem casos de feminicídio e violência contra a mulher. Dos 1.389 episódios, 281 foram na Bahia. Mais uma vez, o Rio de Janeiro liderou o ranking, com 256 vítimas. “Os altos índices de violência contra as mulheres em nosso país e registrados nesse período abordado pelo Observatório, atingindo em sua maioria as mulheres negras, não podem ser naturalizados. Trata-se de um problema de saúde pública que afeta a vida das mulheres quando não lhes tira a vida pelo feminicídio. Com a pandemia essa realidade só piora”, disse a Secretaria Estadual de Política para as Mulheres, em nota.
“Nos lares aonde a violência doméstica está presente, o fato das mulheres, diante do necessário isolamento social, permanecerem mais tempo com o agressor faz com que as mulheres estejam em maior situação de vulnerabilidade. Cada mulher que morre pelo fato de ser mulher devemos entender como uma falha da nossa sociedade, da nossa civilização. Governo e população precisam se unir. É preciso prevenir e punir, fazer cumprir a lei e fortalecer a rede de enfrentamento à violência, o sistema de Justiça para acolher a mulher agredida, mas se não cuidarmos da cultura machista alimentada pela Ideia de que o homem deve subordinar a mulher, continuaremos a ver esses índices crescerem”, continua o texto com o posicionamento do órgão.
Dados do Anuário mais recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, de 2019, constataram que a taxa de homicídios no Brasil é uma das mais altas do mundo: são 28 por 100.000 habitantes. Entre os jovens negros do sexo masculino, na faixa de 19 a 24 anos, a taxa é de mais de 200 a cada 100.000 habitantes. Os negros são 75% dos mortos pela polícia; mulheres negras são 61% das vítimas de feminicídio.
Os integrantes da pesquisa da Rede relatam também que na Bahia, onde dados sobre violência letal ou não são produzidos com sistematicidade, ou há limitações na divulgação de informações sobre o perfil da vítima e as circunstâncias das mortes, os elementos coletados funcionam como um farol que indica tendências sobre o contexto da segurança pública no estado. Contudo, o projeto pontua que não busca substituir ou rivalizar com a produção de dados por instituições governamentais. Pelo contrário, as informações divulgadas são complementares às estatísticas oficiais para permitir construir cenários mais abrangentes sobre o que ocorre no cotidiano desses estados.
As instituições nacionais que participaram do projeto, que tem apoio da Fundação Ford, foram a Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas (INNPD), o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações, Populares (Gajop), o Laboratório de Estudos da Violência (LEV/UFC) e o Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP). As instituições nacionais que participaram do projeto da Rede, além do CESeC, foram a Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas (INNPD), o Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações, Populares (Gajop), o Laboratório de Estudos da Violência (LEV/UFC) e o Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP).
Foto: divulgação