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O DIÁRIO DA PESTE – ARMANDO AVENA

Redação - 15/04/2020 16:08

Tempos de pandemia são tempos de quarentena e, em isolamento, só a arte é capaz de matar o tempo. Acho que foi por isso que Pampinéa, após fugir da peste, refugiando-se nas colinas de Florença, propôs as  seis moças e aos três rapazes que a acompanhavam; que passassem o tempo contando histórias e tantas e tão interessantes eram, que após atingirem a centena tornaram-se o Decamerão, de Giovanni Boccaccio.  Quase sete séculos depois, encontro-me, tal qual os jovens florentinos, fugindo da peste e em isolamento social.  Pensei então, seguindo a ideia da bela Pampinéa, em matar o tempo com todo tipo de arte que estivesse ao meu alcance. Mas a arte é uma amante ciumenta, já dizia Emerson, então resolvi  entregar-me inteiramente a uma única forma artística. Elegi a literatura como minha  amante, decidido a passar os dias e as noites com ela.

Mas, semelhante a Desdemona, que Otelo supunha volúvel como água, pus-me a ler muitos livros ao mesmo tempo. A velhice tem suas idiossincrasias e, se quando era jovem abria um livro e só o abandonava ao cabo do derradeiro ponto, agora dou-me ao desplante de ler vários ao mesmo tempo, sem qualquer regra ou intenção. Assim, impressionei-me com a prosa poderosa de Ricardo Piglia em “Respiração Artificial”, mas só para concluir, após ter lido antes os Diários de Emilio Renzi, que jamais poderei amar outro argentino depois de ter sido apresentado a Jorge Luis Borges. Então, mais que depressa, peguei “o Aleph”na estante e deliciei-me pela enésima vez com o conto “o Imortal”, de título bem sugestivo para esses tempo de pandemia. Ainda deixei-me enredar por “Plataforma” de Michel Houellebecq, esse sub-Céline da modernidade, até encontrar-me, após muitos anos de separação, com Jean Jacques Rousseau.

Não sei que estranhos desígnios levaram-me a reler “As Confissões”, mas a prosa era maravilhosa e o livro encheu-me a casa de convidados e tão interessantes eram que abandonei o isolamento pouco me importando que algum deles estivesse infectado. Como não deixar entrar em casa mademoiselle Lambercier, que fazia o menino Rousseau entrar em êxtase, mesmo quando apanhava, ou madame Warens, que o encantou desde o primeiro momento? “Sentir antes de pensar; é o destino da humanidade”, dizia Rousseau que pensou o amor, a política, a educação e até a psicanálise, pois deve ter sido tão útil a Freud, quanto o foi Dostoievski.

Mas, parafraseando Hipócrates, a literatura é longa e a vida breve e não há quem suporte tamanho isolamento apenas com um livro na mão. E, afinal, sempre há lugar para uma boa música, um vinho honesto , uma boa conversa e um filme de qualidade. Assim, voltei a ser volúvel, abandonei os livros e pus-me em frente a TV em busca de algo para entreter o espírito. Como todos os dias assisto obrigatoriamente a uma série de terror intitulada “Covid-19”, preferi dedicar-me aos filmes e vi belos filmes espanhóis, como Él Árbol de la Sangre, na Netflix,  e, no serviço de streaming do Tele Cine, o tocante “Guerra Fria” e o surpreendente “The Square”, que merecia muita discussão, mas, neste caso,  qualquer spoiler  seria uma ofensa ao leitor.

Foi então que um atavismo recorrente me levou a Itália, hoje devorada pela peste e um espelho a refletir o Brasil de logo mais.  Chovia, e as imagens de “Oito e Meio” de Frederico Fellini  foram aparecendo, escuras e frias como a noite, trazendo a beleza de Claudia Cardinale e de Marcelo Matroianni e a história do artista em dolorosa crise de inspiração. Passei muitos dias vendo a Itália pelos olhos do seu cinema, até que um dia, disposto a por fim a tantos filmes de muito pensar e pouca ação, apertei o play para ver “Histórias Extraordinárias” baseado em ninguém menos do que Edgar Allan Poe. E foi então que Jane Fonda, recém colhida de um roseiral, apareceu na pele da  terrível Condessa de Metzengerstein,  em uma incrível história de transmigração de corpos, dirigida por Roger Vadim.  E, logo depois, surgiu Alain Delon, dirigido por Louis Malle, no papel de  “William Wilson”, o oficial que comete as mais atrozes vilanias e  é desafiado por uma Brigitte Bardot, bela e morena, mas que só é capaz de ser vencido por outro William Wilson. E por fim, o genial conto de Poe “Nunca Aposte sua Cabeça com o Diabo” vai cair nas mãos de Fellini e Terence Stamp ( é preciso rever Teorema de Passolini!) entra na pele de um quase irreconhecível Toby Dammit. E foi assim,  ao redor e livros e filme que passei esses dias de isolamento, sempre lembrando Nietzsche: se a verdade é a peste “temos a arte para não morrer da verdade”

Publicado no Caderno Cultural do Jornal A Tarde em 15/04/2020

 

 

 

 

 

 

 

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